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“Na Casa Ermelinda Freitas não há nenhum ano sem projetos”

Por a 8 de Março de 2024 as 0:10
Leonor Freitas - Casa Ermelinda Freitas

Leonor Freitas agarrou num negócio de vinho a granel com 60 hectares e apenas duas castas plantadas, e transformou-o na Casa Ermelinda Freitas, uma empresa e uma marca que fatura cerca de 40 milhões de euros, exporta para 42 países e produziu em 2023 quase 14 milhões de litros de vinho. “Uma Casa que quer evoluir tem de inovar constantemente”, afirma nesta entrevista ao Hipersuper.

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Os vinhos da Casa Ermelinda Freitas são premiados desde 1999 e já somam mais de dois mil prémios a nível nacional e internacional. Em 2020 a Casa foi eleita Produtor Europeu do Ano pelo concurso britânico Sommelier Wine Awards. Um percurso de sucesso que se fez com muito trabalho, muita capacidade de inovação e um profundo respeito pela vinha e pelo trabalho das gerações anteriores.

Leonor Freitas - Casa Ermelinda FreitasA Casa Ermelinda Freitas dedica-se à produção de vinho desde 1920. É uma empresa dinamizadora de uma região. Esta ligação é também parte do seu percurso de sucesso?
É uma casa que nasce humildemente como casa agrícola com vários produtos, mas a vinha foi sendo cada vez mais poderosa. Construiu-se depois a adega e, a pouco e pouco, tornou-se a principal atividade. Mas até eu chegar, há cerca de 29 anos, o vinho era todo vendido a granel.
Agora, acho que sim. Esta grande vivência, este grande enraizamento na região, com a região, o facto de ser uma família muito humilde que trabalhou muito a terra, mas com grandes valores, contribuiu para o sucesso. Para já levou a que eu voltasse para cá, o que não estava no meu percurso. E, depois, isto é uma grande família.

Mas quando se pensa que esta é uma Casa centenária, a pergunta é: como se conseguiu mantê-la, e às suas marcas, no mercado como empresa familiar, por mais de cem anos e ao longo de várias gerações?
E, ainda por cima, houve aqui uma situação: os homens da família morreram muito cedo. Eu encontro as partilhas feitas pela minha bisavó porque o meu bisavô faleceu muito cedo. Depois, a minha avó tinha 38 anos quando ficou viúva. Portanto, há aqui um grande papel das mulheres a aguentarem, naquelas alturas, uma casa agrícola e tomarem conta dos filhos. Há, de facto, uma história que é quase única e que traz um grande amor, um grande envolvimento de toda a família, transmitidos de geração em geração, sem se dar por isso. Foi o que aconteceu também a mim.

Porque esteve sempre por cá…
Eu saí mais tarde para estudar, mas vinha sempre aos fins de semana e nas férias. E a minha infância foi aqui, o amor que eles tinham pela terra, aquilo que sentiam e gostavam foi-me transmitido naturalmente. Quando o meu pai faleceu e a minha mãe viu que sozinha não tinha condições para levar a Casa adiante, eu estava a trabalhar noutro setor. Não sei explicar, mas não tive coragem de vender, porque achei que ia ser uma violência para com quem tanto tinha trabalhado. Depois, eu sou filha única…
Portanto, isto foi-se passando de geração em geração: os valores, o amor à terra, a alegria que eles tinham, a luta pelo trabalho e por ter de fazer cada vez melhor, o trabalhar em parceria com os trabalhadores. Isto é um lugarejo onde, ao fim e ao cabo, todos são família. E houve, de facto, mulheres muito fortes nestas gerações.

Os factos que a levaram a assumir a direção do negócio da família são conhecidos e, como referiu, era filha única. Foi acima de tudo um sentido de dever para com o negócio da família? A paixão pelo vinho já lá estava ou desenvolveu-se quando tomou as rédeas ao negócio?
O meu pai tinha apenas 59 anos quando faleceu. O que me levou a vir para cá foi manter o património pelo qual a família tanto tinha trabalhado e ao qual tinha tanto amor. Por isso achei que seria uma violência vender o negócio. Quando vim não sabia muito de vinho, mas sempre gostei muito de andar por aqui, pelas vinhas. As minhas brincadeiras eram com aquilo que eu via fazer: fazia searas de feijão, andava com o pessoal na vinha, sobretudo na minha infância. Eu adorava andar com eles e assistir ao trabalho. Como era filha única quem eu tinha eram os meus pais e os nossos colaboradores, que trabalhavam lado a lado com eles. E acho que fica uma marca da infância para o resto da vida, ficam-nos valores para o resto da vida, embora não pensasse em vir. Eu seria a geração que não viria para cá trabalhar. Tinha tirado o meu curso superior em Serviço Social e estava a trabalhar na Administração Regional de Saúde, o meu marido era engenheiro na Portucel e tínhamos a nossa vida organizada fora daqui. Às vezes pensava: “pode ser que algum dos meus filhos goste…”, mas não estava no meu projeto de vida vir. Nas férias vinha sempre ajudar, vinha nos fins de semana, mas era diferente, não sentia a responsabilidade. Mas quando pensava em vender, arrepiava-me toda. Não sou do género de pessoa que nunca está satisfeita com o que tem. E fui habituada a gerir, porque a agricultura sempre foi difícil e dura. Mas, de facto, tinha tudo o que precisava e nem sequer tive o entusiasmo de ficar com o dinheiro. Portanto, o que me fez vir foi, sobretudo, o amor e a paixão que a minha família me passava, por aquilo que eles tinham conseguido alcançar com muito esforço. Chego com uma motivação enorme e começo a aprender. E aprendia tudo o que ouvia. No fundo, tinha adquirido conhecimentos ao longo dos anos, que nem sabia que estavam cá, e comecei a ver que era aqui que me reencontrava, e que, aqui, era muito feliz. Gosto muito do negócio e não parei.

Mas foi uma grande mudança…
Eu não sabia sequer o que isto movimentava. Quem vive de dois ordenados, com uma vida estabilizada e tudo organizado, não gasta mais do que o que ganha… A minha filha tinha quatro anos e o meu filho tinha dez, eram muito pequenos. Nós mudamos, inclusivamente, de casa e viemos morar para a casa da minha mãe. Só o meu marido é que manteve a vida profissional, por isso, economicamente houve também um enorme esforço porque passei a viver apenas do ordenado dele. Mas o mais difícil foi adaptar-me à instabilidade económica e nos primeiros anos estava sempre a pensar que não iria conseguir ultrapassar essas dificuldades: as condições climatéricas, uvas que se estragavam, não ter dinheiro porque era preciso fazer um investimento permanente… Mas eu queria que a casa fosse para a frente.

Até porque muitas pessoas dependiam de si…
Sim, e tinha a minha mãe. Isto era a vida dela. Eu venho querer mudar, inovar e ela com receio porque eu tinha saído para estudar e a minha mãe via em mim mais a menina da cidade.

E também não deve ter sido fácil aceitarem-na. Atualmente há cada vez mais mulheres no setor dos vinhos. Mas não era o caso quando assumiu a empresa. 
Leonor Freitas - Casa Ermelinda FreitasNinguém esperava que eu viesse para cá. Os próprios funcionários que aqui trabalhavam tinham muita dificuldade em aceitar o que eu dizia. Já comprávamos uvas a outros produtores e houve que dissesse “eu não faço negócios com mulheres”. O meu marido estava cá apenas ao fim de semana, mas passavam a vida à procura dele. E ele teve um papel importante, que foi o de dizer-lhes: “Isso não é comigo, é com a Leonor. É ela que cá está”. Respondiam-lhe que não faziam negócios com mulheres e ele dizia-lhes que então, não iriam fazer negócios, porque teria de ser com a Leonor. O meu marido colocou-se sempre disponível para ajudar no que fosse preciso com os filhos e o restante, mas explicava que o negócio era com a sua mulher.
Houve várias histórias. Por exemplo, ser eu a única mulher em reuniões da AVIPE (Associação de Viticultores do Concelho de Palmela) e ouvir o coordenador nas reuniões dizer “minha senhora e meus senhores”. Teve de haver, da minha parte, uma grande afirmação: assumir “é isto que vou fazer”, transmitir e impor. E também um cuidado e uma preparação enorme para não falhar. Agora já tenho margem para falhar, mas na altura não tinha. Para que as pessoas viessem a ter confiança em mim, viessem a respeitar-me, eu não podia falhar em nada.
Houve vários ‘testes’, digamos, para perceberem até onde eu manteria a minha segurança. A minha suposta insolvência foi falada várias vezes, quando o negócio até estava a correr bem. Iam dizer à minha mãe que eu estava só a gastar dinheiro e que ia tudo correr mal – quando comecei a introduzir castas porque só tínhamos duas, Castelão e Fernão Pires, ou quando comecei a fazer vinho. Percebo que a minha mãe sofreu imenso. Os meus primos tinham adegas e ela dizia-me: “os teus primos guardam dinheiro e tu gastas tudo”. Mas depois começou a ter segurança em mim.

Até porque implantou uma revolução no negócio da família. Quais foram as alterações que mais influenciaram o sucesso da casa a partir da sua chegada?
Das grandes metas, há uma que foi marcante nas decisões: a minha ida a Bordéus, França. Quando assumi, como sabia pouco do setor e queria atualizar-me, comecei a ir às instituições – a Comissão Vitivinícola, o IVV. E percebi que iam todos a uma feira internacional em Bordéus. Perguntava-lhes o que iam fazer àquela feira e respondiam que não era para mim porque ainda não tinha vinho engarrafado ou perguntavam o que ia eu fazer em Bordéus. Aquelas respostas deram-me uma vontade enorme de ir, afinal, ver o que não era para mim. Pedi ao meu marido para tirar três dias de férias e lá fomos os dois num Renault Clio comercial, o carro que eu tinha na altura, numa viagem direta daqui a Bordéus. Ainda hoje tenho esse carro.
Quando cheguei á feira percebi que tudo aquilo era deslumbrante, que tratavam os vinhos com uma dignidade que eu não estava a dar e isso abriu-me os horizontes. Acabei por encontrar um primo que trabalhava no setor dos vinhos e ali estava com um amigo: o enólogo Jaime Quendera, ainda estudante de enologia, que eu não conhecia, embora ele seja daqui. O meu primo apresentou-me o Jaime, disse-me que no dia seguinte iam visitar alguns chateâux para conhecer as adegas e fomos com eles. Visitamos vários chateâux e apercebi-me que a área de vinha daquelas vitivinícolas era mais pequena do que a minha – na altura eu tinha 60 hectares e lá, quem tinha 18 hectares era grande.
Ainda não havia este edifício moderno de adega, apenas a adega antiga, não tinha escritórios porque quem vendia vinho a granel não precisava. E vim de lá a saber que tinha de construir uma adega nova, que tinha de dignificar o vinho, e criar uma marca. Regressei cheia de ideias, mas não tinha dinheiro. Não desisti e comecei a desenhar o que poderia fazer. Durante as visitas aos châteaux, vi que o Jaime Quendera era um jovem muito entusiasmado e percebi que iria longe. Uns tempos depois de voltar da feira fiz-lhe uma proposta de trabalho. E foi assim que ele se tornou enólogo desta Casa, sem ainda ter sido em mais nenhum sítio. Com isto tudo, já lá vão uns 30 anos. Começamos esta parceria ainda a fazer vinho para vender a granel, mas fomos evoluindo os dois.

Houve logo uma aposta no bag-in-box…
Sim, mas apostei por necessidade. Nós vendíamos vinho a granel há muitos anos, sempre para a mesma empresa. Tinha uma marca, a Terras do Pó, mas o meu grande negócio era o vinho a granel. Mandava-lhes as amostras todos os anos, depois negociávamos preços e correu sempre bem. Mas há um ano em que essa empresa me diz que não vai comprar o nosso vinho, porque não precisava. Imaginei o que iria fazer da minha vida. Estive dois dias a pensar, dia e noite, e resolvi avançar para o bag-in-box para vender o vinho que tinha.
Chamei o Jaime e disse-lhe que iríamos fazer um bag-in-box, numa altura em que este produto não era associado a boa qualidade. Mas tínhamos vinho de qualidade que iria fazer a diferença. Eu tinha já uma marca registada, a M. J. Freitas – Manuel João de Freitas, o nome do meu pai – comecei a vender e as pessoas perceberam que o vinho era muito bom para o segmento bag-in-box da altura. Tomou tal proporção que ainda hoje o bag-in-box é um produto importante nesta Casa, quer para o mercado português, quer para exportação.
Foi a partir daí que cortei a ligação com a empresa que comprava o nosso vinho e comecei a criar as marcas, a ir para o mercado, sempre com vinho de qualidade com uma boa relação de preço. E assim a Casa Ermelinda Freitas foi crescendo.

Mas a primeira marca criada foi ‘Terras do Pó’…
 Sim, foi a ‘Terras do Pó’, a partir do nome desta localidade, Fernando Pó. Eu queria registar Terras e Areia, porque estas terras são de areia, mas já existia a marca. Foi a minha filha, que ainda era pequena, quem sugeriu Terras do Pó.
Ter começado a engarrafar e a criar as marcas foi outro momento marcante no meu entender, juntamente com o ter saído daqui para estudar e a decisão de ir a Bordéus. O facto de engarrafar tornou a Casa conhecida, deu-nos o nosso mercado. Outro fator importante foi a imagem das garrafas, que na altura foi inovadora. Fomos para as cápsulas com riscas quando eram todas pretas, para rótulos com cores numa altura em que não os associavam a qualidade.

Que outras inovações contribuíram para o crescimento da Casa? A introdução de castas não autóctones e até estrangeiras não terá sido um processo de fácil aceitação….
Foi muito difícil, mas também uma enorme inovação. Eu comecei a ir às feiras internacionais e a ver que se não tivesse castas conhecidas, e até estrangeiras, que os compradores reconhecessem, não provavam as nossas. A primeira que plantamos foi uma casta portuguesa muito conhecida, a Touriga, mas ninguém acreditava que desse certo porque dizia-se que nesta região só se davam bem a Castelão e a Fernão Pires. Ninguém tinha outras castas, fui a primeira a introduzi-la. E também aí a minha mãe sofreu imenso porque iam dizer-lhe que eu andava a gastar dinheiro a plantar vinha que não ia produzir.
Mas eu não desisti e tenho neste momento 30 castas diferentes, que permitem uma ativação permanente da marca, porque temos sempre novidades. Estou sempre a inovar, tenho castas pouco conhecidas, como a Gravo Stamina, a Carmenere. E dá-nos grande alegria ver que uma casta chilena, como é o caso da Carmenere, tem aqui um comportamento diferente. Merlot, Cabernet, Syrah, Pinot Grigio são castas que se dão muito bem aqui. Dão-me um leque enorme de possibilidades junto dos consumidores e nas feiras internacionais. Estamos em todas neste momento e os compradores podem provar e perceber o comportamento das castas. Provam um Cabernet e depois damos a provar uma casta típica da região, como o Castelão.
Outra inovação que marcou foi o novo centro de vinificação, inaugurado em 2016, porque passamos de uma adega tradicional para uma moderna, com toda a tecnologia que permite fazer os melhores vinhos. Temos vários tipos e dimensões de cubas, temos os estágios dos vinhos. Porque queremos ir ao encontro de todos os consumidores, todos os mercados, mas sempre com qualidade. E mesmo o vinho mais barato, tem qualidade, tem dignidade. Uma Casa que quer evoluir, e tem sido esse o caso, não pode estar parada, tem de inovar constantemente, antecipar-se.

E numa região de terras de areia, produz vinhos que já receberam inúmeros prémios, em Portugal e no estrangeiro. Este percurso passa também pela sustentabilidade da vinha?
Estamos numa grande região, a Península de Setúbal é uma região espetacular. Temos muita água, estamos entre dois rios, Tejo e Sado. Mas, sim, passa muito pela sustentabilidade da vinha. Nós tivemos, desde o início, uma grande preocupação com a sustentabilidade, quer na vinha com uso de produtos o mais ecológicos possíveis, quer em outras áreas. Estamos em proteção integrada, grande parte da energia para a adega é solar, temos uma ETAR (Estação de Tratamento de Águas Residuais). Temos uma grande área de vinhas velhas todas trabalhadas manualmente. Tenho vinhas com 72 anos, não dão lucro, mas dão grandes vinhos. Há um equilíbrio: vamos reestruturando vinhas, mas deixamos sempre uma parte antiga, propositadamente, e, enquanto pudermos, vamos mantê-las. E mesmo quando vamos para a mecanização, e tem de ser até porque há falta de mão de obra, utilizamos as que são menos agressivas, que menos danificam, que gastam menos energia possível. A desinfeção das máquinas é feita a vapor e não com produtos químicos.
Portanto, a sustentabilidade foi, é, e será uma grande aposta e há muito ainda a fazer. Há muita água nesta região, mas ela não é infindável e temos de a poupar. Um dos grandes objetivos é aproveitar a água da ETAR para regar a vinha e estamos, neste momento, a ver qual é a melhor forma de o fazer. Já aproveitamos para a rega, a água de arrefecimento dos depósitos.

Quantos hectares de vinha tem a Casa Ermelinda Freitas?
Temos aproximadamente 550 hectares. Mas como vamos reestruturando, neste momento temos 470 hectares a produzir. E tenho uma grande responsabilidade social na região porque compramos uvas e damos apoio a mais de 100 pequenos produtores, que não têm adega. Compro há muitos anos e tantas uvas quanto as que tenho. Este ano foi difícil, houve empresas que não compraram uvas aos seus produtores, mas eu comprei. Aqui na região não deixei nenhuma uva na terra. Ajudei, aqui ao lado, no Alentejo, porque houve excesso de produção e aquilo que eu pude, comprei. Acho que temos de nos ajudar e ser um todo. Quando alguma coisa corre menos bem, a minha grande preocupação são os produtores e os nossos funcionários, que trabalham aqui há muitos anos, há gerações. Fazem parte desta família, desta Casa, são eles que nos têm ajudado e é com eles que crescemos.

Como correu a campanha 2023/2024? Houve um aumento no volume de produção?
Houve um grande aumento de produção. Fizemos mais três milhões de litros do que o habitual. O volume total esteve perto dos 14 milhões de litros. Portanto, correu bem embora fosse um ano muito difícil em relação às condições climatéricas. É aí que, cada vez mais, as adegas têm de estar preparadas. Há mudanças climatéricas e temos de ter adegas prontas para fazer as vindimas no tempo adequado, para poder receber as uvas em quantidade e dar resposta às máquinas de vindimar que apanham a uva no momento certo. Têm de ter frio, porque hoje, com o calor, se formos fazer vinho com altas temperaturas altera-se as características que a uva.

Quantas marcas de vinho a Casa tem no mercado?
São muitas, porque é por ‘famílias’ que fazemos os vinhos. Por exemplo, do Dona Ermelinda fazemos o Tinto, o Branco, o Reserva, o Branco Reserva, o Grande Reserva. E lançamos agora o Rosé, estamos muito contentes com este lançamento porque fazia falta à gama. O gosto dos consumidores vai mudando e temos de nos adequar, porque o vinho não é para nós bebermos, é para o consumidor. Temos muito prazer naquilo que fazemos, mas temos de nos adaptar ao consumidor. Por isso fazia-nos falta uma Rosé na gama Dona Ermelinda.
E depois temos os ‘nichos’, como o Leo d’Honor, feito com a casta Castelão, na vinha de 72 anos e apenas em anos de grande qualidade. Outro exemplo é o Moscatel, que existia nesta região só na zona de Azeitão, mas que se dá muito bem nestas terras de areia, porque apanha umas características diferentes da serra. Temos o Moscatel de Setúbal, o Moscatel de Setúbal Superior e o Moscatel Superior Roxo, que é um ex-libris da Casa. Todos os nossos moscatéis, mesmo o mais económico, estagiam no mínimo três anos em barrica e temos mais de quatro mil barricas. E temos vinhos para os mercados exteriores, adequados àquilo que o importador quer. Há aqui um grande investimento na qualidade.

E tem vinhos para a restauração e para as insígnias alimentares?
Temos uma gama distribuída na restauração e fazemos gamas para as grandes superfícies, porque é nas grandes superfícies que se faz volume e temos de ser competitivos. Como a gama Vinha da Valentina, exclusiva no Continente, a gama Vinha do Torrão, apenas para o Pingo Doce, a gama Vinhos da Arrábida, distribuída no Recheio.

E, entretanto, decidiu ‘sair’ da região e alargar a Casa Ermelinda Freitas ao Minho e ao Douro, com a aquisição da Quinta do Minho, em Póvoa de Lanhoso, e da Quinta de Canivães, em Foz Côa. O que a levou a investir ‘fora’ e porque aquelas regiões?
Esta é a base e aqui será sempre a casa mãe. Mas quando fui ao Douro, já depois de estar no setor, emocionei-me. Aqui é tudo plano, mais fácil de trabalhar. O Douro tem aqueles socalcos, aquele contraste com o rio, achei maravilhoso e pensei que gostaria muito de ter ali uma quinta. Por questões económicas, essa vontade foi adiada até porque tenho feito grandes investimentos aqui. Mas o sonho estava cá.
Quanto aos vinhos verdes, não tinha pensado nesse investimento. Mas um dia recebo um telefonema do grupo Super Bock, que detinha a Quinta do Minho, a perguntarem se estaria interessada em comprá-la. E, pensei: já que não compro no Douro, não está fora de questão investir no Minho, porque o Vinho Verde é um vinho diferenciador no estrangeiro. Fui ver a quinta e achei que era possível. Eles foram extremamente honestos no negócio, fiz uma contraproposta e foi aceite. Houve apenas o compromisso de fazer a escritura um ano depois. Nesse intervalo de um ano, aparece a Quinta de Canivães, perto de Foz Côa. Fui ver a quinta, não consegui deixar de lá ir, e correspondia ao meu sonho: vai em socalcos até ao rio, tem 900 metros de rio. O Jaime Quendera, que foi logo envolvido nas duas quintas, dizia-me que a do Douro era lindíssima, mas um sonho difícil de rentabilizar. Pensei muito, mas decidi que tinha direito a realizar um sonho e decidi comprar.
Assim, acabei a comprar duas quintas e estamos na fase de grande desenvolvimento de ambas. Da Quinta do Minho já temos vinhos no mercado, é-nos mais fácil de rentabilizar porque já tinha adega e linha de engarrafamento. Ali, o nosso topo de gama é o Quinta do Minho e já estamos a exportar os verdes.
A Quinta de Canivães não tem adega, temos vendido uma parte das uvas e vamos lançar brevemente um vinho do Douro, um Reserva. Mas a quinta produz azeite, com a marca Quinta de Canivães. São apenas quatro hectares, mas estou encantada por ter azeite e este é muito bom, é um produto que complementa.
Não tem sido fácil, até porque não é fácil começar noutras zonas, há sempre questionamentos. Mas temos de aprender a viver na região, a adaptarmo-nos à região, e irmos inovando e crescendo. Estou a aprender a viver com as regiões e com as pessoas com humildade e as coisas hão-de correr bem.

A internacionalização da Casa tem a sua assinatura. Quando percebeu que era preciso crescer fora do território nacional? Começou pelo ‘mercado da saudade’?
Lembro-me perfeitamente. Na altura em que comecei, não era prestigiante o ‘mercado da saudade’. Mas, para mim, é o contrário. O chamado ‘mercado da saudade’ é aquele a que temos de agradecer. Os portugueses estão espalhados pelo mundo, são uma porta aberta para entrarmos e aproveitei muito esse mercado. Estou-lhes muito grata. Ainda hoje recebo emails e telefonemas a perguntarem onde podem encontrar os vinhos. Não é por acaso que um dos meus principais mercados externos é o Luxemburgo.

Exporta para quantos países e quanto representa a exportação?
Exportamos para 42 países. Nós faturamos cerca de 40 milhões de euros e a exportação representa 35% das vendas. O meu primeiro mercado é o Reino Unido, Luxemburgo é o segundo, o terceiro é a Holanda. Seguem-se Brasil, Polónia, Alemanha e Estados Unidos da América. E temos uma grande hipótese de crescimento para Alemanha, Polónia e Brasil.

Há novos mercados?
Sim. Por exemplo, estamos no Gana e a crescer. Estamos também na Colômbia e no México e a trabalhar para entrar no Vietname. A Índia é um grande mercado, difícil, mas que temos de tentar. Sempre que aparece uma oportunidade, não a perdemos. Às vezes com muito esforço, mas sempre na perspetiva de virmos a valorizar a nossa presença. A nossa grande perspetiva é na exportação. Acreditamos que temos um grande leque de oportunidades. Nós não desistimos, vamos uma, duas, três vezes.

A Casa Ermelinda Freitas já recebeu mais de dois mil prémios, a nível nacional e internacional. Mas o premio de Melhor Vinho Tinto do Mundo atribuído ao seu Syrah 2005 no Vinailes Internacionales em 2008, entre mais de três mil vinhos a concurso, foi um marco? Houve um antes e depois, na exportação?
Houve, sim. Aliás, todas as medalhas que conquistamos no estrangeiro ajudam muito. Mas aquele prémio foi especial. O produto era muito bom, é um facto, mas também tivemos de ter sorte. Porque quando concorrem 360 produtores de 38 países e chega à final um vinho português, já é muito bom. E ser da Casa Ermelinda Freitas, foi espetacular. O concurso envia todos os anos a sua documentação para concorrermos e em 2009 lá vinha a garrafa do Syrah 2005 a dizer “concorra, queira ser como este”. Isto correu o mundo. Foi um marco e ajudou-nos muito a sermos conhecidos, porque estávamos ainda no início na exportação.

As feiras internacionais e os eventos trazem sempre visibilidade…
Nós temos uma grande consistência de presenças internacionais. Os compradores estão habituados à nossa presença e vão à nossa procura. Tal como estamos também presentes nos festivais em Portugal. Foi ao mesmo tempo arrojado e um risco. Pensamos, ponderamos e achamos que tínhamos que ir onde estão os jovens, mas sempre com a grande preocupação de passar a mensagem ‘wine moderation’. Começamos por marcar presença no Festival Santa Casa Alfama e já estamos também em outros, como o Festival Sudoeste, na Zambujeira do Mar. São grandes investimentos, porque temos pavilhão próprio com todos os equipamentos necessários, mas é a nossa imagem que lá está e ficamos surpreendidos com a afluência. Nunca pensei que as pessoas fossem comprar um copo de vinho para beber sem mais nada, mas vão. Temos de estar com dignidade, mas deixar-nos de querer ser elitistas, porque, senão, perdemos a população. Estamos nos festivais não por uma questão económica, mas por presença e afirmação da marca e também para transmitir a ideia de que o vinho é um bem de partilha.

Que projetos estão pensados ou a ser já desenvolvidos para este ano?
Na Casa Ermelinda Freitas não há nenhum ano sem projetos. Tivemos o projeto das grutas, com grande sucesso. Estagiamos 12 mil garrafas nas grutas de Mira de Aire. O responsável pelas grutas gostava muito do vinho da Casa Ermelinda Freitas e faz lá jantares e apresentações de vinhos. Um deles foi ‘Vinhos com Dona Ermelinda’ e deixou umas garrafas nas grutas, a 80 metros de profundidade. Passados dois anos, encontrou-se com uma pessoa que, por acaso, é nosso amigo, e foi buscar o vinho às grutas para abrir. Bebeu, percebeu a diferença e disse que o vinho estava muito melhor. O nosso amigo concordou e disse-lhe que nos conhecia.
Nasceu ali a ideia de estagiarmos o vinho nas grutas de Mira de Aire. Fizermos um investimento muito grande porque tivemos de usar materiais que não fossem corrosivos, que não interferissem nas grutas, tivemos que contratar pessoas que levaram o vinho até 80 metros de profundidade – com mochilas às costas e ao peito, para equilibrar. O vinho deveria ter estado ali dois anos, mas esteve cinco por causa da pandemia. Tiramos seis mil garrafas, fizemos o lançamento e o ‘Vinho das Grutas’ tem sido um sucesso enorme. Provamos, no lançamento, o vinho que ficou cá e o que estagiou nas grutas e a diferença é grande: o vinho está mais jovem, mais frutado. Tiramos depois mais seis mil garrafas e colocamos outras. É um projeto para manter.
Além disso, há castas novas que vamos lançar, porque começam agora a dar uvas. E vamos, de certeza, lançar dois grandes vinhos, possivelmente no segundo trimestre. A ativação da marca é isso…

Nesta sua missão de continuar a fazer crescer a Casa Ermelinda Freitas…
Tenho cá já a quinta geração, os meus filhos. A minha filha está sempre cheia de ideias e eu, por enquanto, também. Tenho sempre muitos projetos, é muito bom trabalhar com a juventude. Até me esqueço da idade. E temos que nos adaptar ao crescimento contínuo. Nada é estático, a sociedade é dinâmica.
Temos de ir arredondando os espinhos da rosa, porque também há muitos espinhos. Eu falo tão entusiasmada que às vezes parece que isto é só uma maravilha, e não é. Mas tenho uma filosofia de vida: não desistir, lutar, ajudar. E ir arredondando os tais espinhos da rosa, para que ela fique bonita, mas com a humildade de saber que ela nem sempre se mantém. Temos de estar muito atentos e sempre a acompanhar a sociedade e o seu desenvolvimento.

Leonor Freitas - Casa Ermelinda Freitas“Ela quer, vamos apoiar”
Leonor Freitas, 71 anos, é o rosto da Casa Ermelinda Freitas, empresa vitivinícola fundada há mais de 100 anos pela sua família. Situada em Fernando Pó, concelho de Palmela, a propriedade tem 550 hectares de vinha. Após a morte do pai, Manuel João de Freitas, a mãe, Ermelinda, viu-se sozinha a gerir os destinos da Casa e a filha teve de tomar uma decisão: vender ou assumir o negócio. Deixou para trás a profissão de assistente social e tomou as rédeas do negócio. “Não sei explicar, mas não tive coragem de vender”, conta.
Ter saído de Fernando Pó para continuar os estudos fez a diferença na hora de regressar. “Quando cheguei para assumir, tinha nitidamente a perceção da importância da evolução, da mudança”, conta Leonor Freitas ao Hipersuper. E ter estudado, deve-o, principalmente, o pai. “Tenho de agradecer à minha família, já que na minha altura as mulheres só completavam a 4ª classe. Não havia luz, estudei com um candeeiro a petróleo, mas queria muito continuar os estudos e tive a sorte de ter um pai com abertura para questionar porque eu não haveria de estudar só por ser mulher. ‘Ela quer, vamos apoiar’, disse o meu pai”.
Foi, então, estudar para fora e para além dos livros e da mala levou uma recomendação. “Eu não podia perder nenhum ano e nem começar a namorar, senão regressava imediatamente a Fernando Pó. Correspondi sempre porque não queria era voltar. E, no fim, venho acabar a minha vida em Fernando Pó. Veja como tudo isto muda”, confidencia ao Hipersuper.
Regressou, agarrou num negócio de vinho a granel com 60 hectares de produção e apenas duas castas plantadas, e transformou-o numa Casa e numa marca que fatura cerca de 40 milhões de euros, com a exportação a representar 35% das suas vendas, e que produziu em 2023 quase 14 milhões de litros de vinho.

Entrevista publicada na edição 420 do Hipersuper

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