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Jorge Tomás Henriques (FIPA): “É preciso olhar atentamente para a capacidade produtiva da Europa”

Por a 21 de Abril de 2022 as 15:45
Presidente da FIPA, Jorge Henriques
Presidente da FIPA, Jorge Henriques

FIPASe a pandemia chamou a atenção dos cidadãos europeus para a importância da soberania alimentar, a guerra na Europa trouxe o tema para o debate político. Jorge Tomás Henriques, presidente da FIPA, acredita que chegou a altura de repensar a capacidade produtiva no espaço europeu

A um contexto de pós-pandemia, aumento do custo das matérias-primas e da energia, junta-se uma guerra na Europa, a possibilidade de a União Europeia (EU) deixar de comprar petróleo russo, um embargo que poderá estender-se ao gás natural, e um período de seca extrema. Este cocktail pode colocar em causa o funcionamento de algumas indústrias agroalimentares em Portugal?

Esta situação que estamos a viver há vários meses, nomeadamente no início da retoma pós pandemia, que ainda não é verdadeiramente um pós-pandemia porque estamos ainda a viver esse ciclo, mas a retoma que se deu no mundo quase em simultâneo levou a uma enorme pressão sobre as cadeias de abastecimento e sobre os produtores mundiais de matérias-primas. Em todas as áreas, não estamos a falar exclusivamente dos produtores de matérias-primas alimentares, estamos também a falar dos produtores de matérias-primas de embalagem, por exemplo.

Porque tiveram de retomar a produção de um dia para o outro, é isso?

Porque tiveram de retomar a produção e essa retoma deu-se em simultâneo com toda a disrupção na cadeia de abastecimento e também em simultâneo com constrangimentos da cadeia logística, nomeadamente o transporte marítimo e o transporte rodoviário, naturalmente, por influência do aumento do preço dos combustíveis, da energia e do gás natural. Esta circunstância criou uma enorme pressão sobre a cadeia de abastecimento e, tem motivado ao longo destes últimos meses enormes preocupações e também dificuldades, nomeadamente no abastecimento. Sobretudo quando comparamos com os períodos de abastecimento antes da pandemia, nos quais os fornecimentos eram praticamente “just in time”. As encomendas eram colocadas de acordo com os contratos anuais e executavam-se sem grandes problemas e atrasos.

Estamos a falar de que tipo de atrasos?

Depende dos produtos, mas aquilo que há poucos meses, antes do meio do ano passado, eram entregas de cerca de duas semanas passaram para nove semanas.

Ou seja, a conjugação de todos estes fatores mundiais e a pressão sobre as cadeias trouxe muita incerteza, muita dificuldade, mas não colocou ainda em risco o abastecimento das matérias-primas essenciais e sobretudo a laboração das indústrias agroalimentares principais.

No entanto, criou uma enorme pressão sobre a rentabilidade e a produtividade das empresas. Por uma razão muito simples. Estes atrasos, aumentos e custos, assim como a incerteza, resultaram não só na espiral de inflação que temos vindo a assistir nos últimos tempos, mas também, e isto é mais importante, a situação foi agravado pela invasão da Ucrânia por parte da Rússia. Portugal importa milho, girassol e óleos alimentares da Ucrânia, o que, naturalmente, fez soar as campainhas do setor para a dificuldade em encontrar alternativas, sobretudo encontrar alternativas num tempo ajustado àquilo que são as necessidades do setor.

Na sua opinião, o prolongamento da guerra pode colocar em risco o funcionamento de algumas indústrias?

Não acredito no prolongamento da guerra. Por várias razões, desde logo geoestratégias. No meu espírito e não com base em informação privilegiada, acredito que esta guerra, nas atuais circunstâncias, não se pode prolongar no tempo.

Por motivos económicos, também?

Por todos os motivos. Em primeiro lugar, humanitários. Não vai haver ganhadores, só perdedores. Em primeiro lugar, o povo da Ucrânia e, em segundo lugar, a Rússia que é o grande perdedor em todos os sentidos. Mas, também a Europa, em particular. Muitos ainda têm noção do que foi a Segunda Guerra Mundial e as suas consequências na Europa e no mundo. Têm bem presentes os custos de uma guerra dilacerante. Penso que este cenário não se pode repetir e que vai haver mediação e intermediação no sentido de terminar o conflito.

Ao não acreditar no prolongamento da guerra, penso que a Europa, em primeiro lugar, e Portugal, em segundo, encontrarão, estão à procura e já encontraram em algumas áreas (Portugal pelo menos), alternativas para os produtos que importávamos da Ucrânia.

Jorge Tomás HenqieAlternativas para estes três principais bens em específico: milho, girassol e óleos alimentares?

Sim, mas repito: a guerra na Ucrânia apenas acelerou a espiral de convulsão que já se estava a viver nas matérias-primas alimentares e a disrupção que estava a haver na cadeia de abastecimento mundial. É importante termos isto presente.

Penso que não iremos chegar a esse cenário [risco de disrupção algumas indústrias agroalimentares]. As alternativas estão a ser encontradas com maior ou menor dificuldade, há alternativa para a soja na América Latina e Argentina, e em outros países, e há alternativas também para o milho, na Argentina, Brasil e EUA, por exemplo.

Mas com custos mais elevados. 

Sim, com custos mais elevados. E há outra questão que temos vindo a discutir com o Governo que tem a ver com as regras da UE que, como sabe, são muito mais apertadas do que no resto do planeta. A UE é sobre esta matéria particularmente restritiva relativamente a algumas questões, mas, mesmo essas, têm vindo a ser negociadas com o Governo e houve recentemente um despacho que altera as regras de rotulagem para os óleos alimentares, para a possibilidade, temporária (caso haja essa necessidade e salvaguardando todas as regras segurança alimentar) poder, sem destruir materiais de embalagem, reetiquetar o conteúdo alternativo que existe àquele determinado óleo. Estes caminhos estão a ser encontrados. Agora, é evidente que com enorme dificuldade e, sobretudo, com custos muito grandes.

Estamos a ver o impacto que isso teve em primeiro lugar nos óleos alimentares. Estamos a falar de aumentos brutais.

Mas há falta de produto ou um encarecimento do produto em função da maior procura?

Não há excesso de produto. É preciso termos noção de que a Ucrânia e Rússia são dos maiores produtores mundiais de cereais e, concretamente, de milho. O que vai acontecer é que todos estão a ir aos locais que têm disponibilidade dessa matéria-prima e a pressão vai ser grande sobre os produtores que são uma alternativa.

Há muita procura…

A procura vai aumentar sobre os mesmos e, por outro lado, temos de estar conscientes que não é fácil repor em tempo útil, nos ciclos produtivos, digamos assim, as culturas que se faziam nestes dois países, nomeadamente na Ucrânia. Vai demorar muitíssimo tempo até porque a guerra impediu as culturas que estavam previstas e, sobretudo, as encomendas que tínhamos feito à Ucrânia.

Temos de estar conscientes de que estamos debaixo de um problema novo para uma Europa que se habituou a ter as suas encomendas just in time, passando a produção, que era tradicionalmente feita na Europa, para terceiros. Esse é também o custo de uma escolha que os europeus, e Portugal inclui-se nesse grupo, fizeram.

Mas também é verdade que essa deslocalização foi feita porque o consumidor e as cadeias de abastecimento pressionam para baixar o preço dos produtos. E, ao longo dos anos, o que é que procurámos? Produto seguro e de qualidade, mas a baixo preço.

Aliás, recordo-me, não há muito tempo, de altos responsáveis dizerem que o futuro da alimentação era de qualidade, mas a baixíssimo preço. Isto não pode ser verdade, nunca foi verdade. É um mito.

Ou seja, se uma parte da produção regressar aos solos europeus será mais cara?

Se a Europa retornar ao seu passado produtivo, e refiro-me aos países que têm capacidade de produção, porque nem todos têm solos disponíveis, e voltarem a ser, não vou dizer autossuficientes, mas recuperar as produções que fazia no passado, esses custos irão aumentar.

Tudo na Europa é mais caro. Porque o nosso nível de vida não tem comparação com o de outras geografias, de onde a União Europeia importa. E, nessa circunstância, acho que todo este caminho tem de repensado e a própria PAC [Política Agrícola Comum] também, porque os europeus da UE não equacionaram a possibilidade de haver uma guerra, colocaram em cima da mesa problemas ligados à transição climática, por exemplo, mas uma guerra nunca lhes passou pela cabeça.

FIPAA pandemia ensinou-nos o quanto é importante os países serem soberanos do ponto de vista alimentar e a guerra veio reforçar essa aprendizagem. Neste sentido, acredita numa mudança de paradigma no qual a Europa volta ao seu passado produtivo, para utilizar a sua expressão?

Vai haver um reposicionamento da Europa e uma reflexão sobre esta questão do abastecimento dos europeus, não só em matéria agroalimentar, mas é disto que estamos aqui a falar. É um dos caminhos.

Eu sempre defendi que não temos de ser exclusivamente guardadores de paisagens. Temos de proteger a paisagem, é a obrigação de qualquer cidadão do mundo e em particular do europeu, mas temos de ser produtivos. E os campos têm de ser utilizados para uma produção sustentável, da mesma forma que a indústria alimentar tem de ser sustentável. É para isso que trabalhamos diariamente.

Acredito que irá haver uma enorme reflexão. Penso que os europeus não aprenderam com a pandemia e que aprenderam agora e, infelizmente, de uma forma abruta com a invasão à Ucrânia. Esta reflexão está, neste momento, sobre a mesa e há já alguns reflexos disso, como a intenção da Europa de fazer compra de alimentos em conjunto. Penso que é um caminho, sobretudo, para assegurar o abastecimento europeu, mas não é o caminho único. É preciso na realidade olhar atentamente para aquilo que é a capacidade produtiva do espaço europeu.

Voltando um pouco atrás, os portugueses podem ficar descansados de que não haverá prateleiras de supermercados vazias, nomeadamente os produtos que utilizam as matérias-primas que estamos com mais dificuldade em adquirir?

Não podemos dizer o futuro vai ser sempre linear. Nas atuais circunstâncias e com as dificuldades que conhecemos (as geografias, os contextos e os preços), acreditamos que vamos conseguir manter alternativas das matérias-primas que necessitamos para a produção industrial portuguesa. Pode haver episodicamente perturbação em um ou outro produto, mas genericamente uma situação que possa levar a racionamentos, ou outras questões, estamos convencidos que não vai acontecer. É preciso é que saibamos gerir muito bem esta cadeia de valor. Penso que é um bom momento de reflexão para os próprios consumidores, que têm de elevar o seu padrão de respeito pelo alimento, evitando toda a espécie de desperdício, ajudando a manter, digamos assim, o nível e o padrão de abastecimento a que estamos habituados.

Mas, é preciso cautela e ir fazer avaliações regulares. No caso da FIPA, fazemos avaliações diariamente e semanalmente, quer com os nossos associados quer com os nossos parceiros europeus.

Ao dia de hoje, achamos que, se as circunstâncias que expectamos neste momento se mantiverem, podemos dizer que conseguiremos, com dificuldade, manter o funcionamento da cadeia de abastecimento.

Na sua visão, como deverá evoluir a inflação, neste contexto, até ao final deste ano?

A inflação vinha já a subir de forma galopante desde o ano passado. E só não é maior porque a produção agroindustrial tem feito um grande esforço de acomodar um conjunto significativo de aumentos que se têm vindo a dar nos últimos meses. Mas é evidente que os aumentos são de tal montante, atingindo de uma forma geral todo o abastecimento, que, hoje, só podemos prever que a inflação vai continuar a subir. Penso que se vai situar em cerca dos 5% que estamos a expectar, porque se virmos o nível de aumento das matérias-primas, mas sobretudo se olharmos para as questões da energia, do gás natural e dos combustíveis, esta situação é de facto verdadeiramente histórica e vai levar a um nível de inflação a que não estamos habituados.

A Confederação Nacional de Agricultura veio a terreiro defender que este aumento de preços também se deve às margens de lucro no retalho. Concorda?

Tenho sido muito claro sobre esta matéria. Na FIPA seguimos com muita atenção a evolução dos mercados mundiais de matérias-primas e fazemos a nossa interpretação desses movimentos. Relativamente à questão das margens, essa é uma matéria da responsabilidade dos nossos associados com os seus clientes. É objeto dos seus acordos e dos seus contratos. Eu tenho dito isto recorrentemente e não é uma figura de estilo: não intervimos ou discutimos essas questões porque são da livre negociação e da concorrência.

Mas há um dado do lado da indústria que me permite fazer uma avaliação: a margem, a rentabilidade que hoje fica para as indústrias, é muito baixa. É das mais baixas da União Europeia e por um conjunto de circunstâncias, entre os quais a dimensão do nosso país.

A indústria alimentar tem vindo a evoluir de uma forma muita intensa, nos últimos anos, nas exportações. No ano passado, conseguimos um crescimento extremamente interessante, feito à custa de muito esforço, muita inovação, porque estamos a competir num mercado mundial extremamente dinâmico. Mas, ninguém está a pensar que um qualquer setor vai enriquecer na exportação. A exportação deveria ser quase marginal. E não é essa a circunstância. As empresas estão a apostar bastante na exportação porque, na realidade, além de muito pequeno, têm um mercado interno de grande esforço.

O52A8602A indústria agroalimentar tem vindo nos últimos anos a crescer, nomeadamente em termos de exportação, e a reforçar a sua competitiva. Como é que o atual contexto vem também afetar este crescimento que a indústria com tanto trabalho conquistou últimos anos?

Até à pandemia, a indústria alimentar vinha a mostrar uma dinâmica muito forte que foi impactada pelos efeitos da pandemia. Desde logo, todos os setores expostos ao canal Horeca, que em dois anos funcionou de uma forma muito irregular, para não dizer que a maior parte do tempo esteve encerrado. As bebidas, os vinhos, enfim, todos os produtos que trabalham com este canal.

Depois, mesmo com os crescimentos que se registaram no consumo no lar, o padrão de consumo alterou-se muitíssimo durante a pandemia. O consumo pode ter crescido em volume, mas, depois, quando falamos de rentabilidade a situação degradou-se porque o cabaz de compras do consumidor também se alterou profundamente. O sortido que muitas marcas tinham no mercado sofreu também muitas alterações, pelos impactos da própria pandemia, e é preciso não esquecer que ainda estamos a viver sobre os efeitos da pandemia.

Registaram-se alterações nos níveis de produção em função da alteração profunda no padrão de consumo, em que se escolheram produtos mais baratos, linhas mais curtas de referências e tudo isso impactou a rentabilidade do setor.

A pandemia perturbou este ciclo de crescimento no mercado interno e acelerou de alguma maneira as nossas exportações com todas as contingências, porque os custos de contexto, ou como costumo dizer o oxigénio que nos falta no mercado interno, depois não nos permite dar saltos ainda mais qualitativos nos mercados de exportação.

Mas as indústrias portuguesas agroalimentares tiveram a inteligência e a capacidade de continuarem a crescer nos mercados externos.

O que é que a pandemia despertou na consciência dos industriais?

Procurar outros caminhos, outras geografias, e é por essa circunstância, potenciada pela qualidade que os consumidores das geografias onde estamos reconhecem aos produtos portugueses, que estamos a aumentar as exportações. Não estamos a exportar porque os outros deixaram de produzir. Estamos a exportar porque os consumidores estrangeiros olham para o produto português como um produto altamente seguro, ao nível do melhor que se faz no mundo, conservando todos os valores reconhecidos pelos consumidores nos produtos tradicionais e nos produtos de grande qualidade. E foi esse fator que nos permitiu crescer nas exportações em 2020 e em 2021. Mas estamos a falar de uma gota de água no oceano.

Qual foi o crescimento?

Cerca de 14% em 2021, quando já tínhamos crescido alguma coisa em 2020.

O conjunto das exportações da indústria agroalimentar?

Sim, passámos para 5,7 mil milhões de euros. O que é extraordinário. Mas, temos de ter consciência que não obstante a indústria agroalimentar faturar 5,7 mil milhões de euros em exportação, somos uma gota pequenina no oceano entre os nossos concorrentes a nível internacional, desde logo Espanha. É, por isso, que dizemos que é preciso continuar a apostar neste caminho e, sobretudo, apostar nas marcas. Na nossa capacidade e competência para fazer bem, uma coisa que temos dificuldade em fazer, por nos centrarmos mais naquilo que corre mal e não no esforço que estamos a fazer para que corra bem e como é que podemos ainda fazer melhor.

Ao longo dos anos, foi praticamente dito que era a agroindústria era um setor sem viabilidade e sem futuro e, hoje, é entre os setores da indústria portuguesa aquele que tem o melhor comportamento em exportação. Estes sinais, como o reconhecimento dos consumidores além-fronteiras, que nos visitaram enquanto turistas e que se reconheceram nos produtos nacionais, e o facto de termos conseguido ultrapassar o mercado da saudade, são positivos.

Mas, ainda temos um longo caminho a percorrer. E somos capazes de o fazer. Para isso, é necessário criar os instrumentos, alguns financiamentos de apoio à exportação até já estão criados, e aplicá-los exatamente na produção externa e sobretudo na evolução das marcas. Sem marcas não conseguimos acrescentar valor às exportações da indústria agroalimentar nacional. É importante uma marca Portugal, sem dúvida, mas é um reflexo daquilo que fomos capazes de fazer enquanto povo, enquanto cidadãos e enquanto país. Depois, as marcas que estão por detrás dos produtos são aquelas que podem potenciar e acrescentar valor. A indústria agroalimentar tem uma enorme capacidade para valorizar os produtos da agricultura nacional, acrescentando-lhes valor, e conseguir exportá-los em condições que os tornem mais competitivos, mas, para isso, temos de estabelecer um desígnio. Andamos todos a dizer isto há muitos anos, mas Portugal não definiu na sua história mais recente, sobretudo das últimas décadas, um desígnio nacional. Fomos erráticos, andamos muitas vezes por caminhos enviusados e descurámos aquilo que podemos fazer em Portugal.

O que podemos fazer?

Podemos exportar mais, temos capacidade para o fazer, podemos produzir localmente alguns produtos que importamos, sem nos fecharmos naturalmente como país nem à economia global a que pertencemos, mas podemos fazer muito mais. É preciso que este desígnio seja colocado na agenda. E que esteja lá permanentemente. Não seja uma coisa de modas. E nós somos muito desta circunstância temporal e agora achamos que sim e amanhã que não. Penso que é o momento de o fazer. Há alguns anos dizia-se que as indústrias tradicionais estavam aí, iriam crescer e tinham todo um potencial que já não lhes era atribuído, mas nos últimos anos praticamente não ouvimos falar de exportações. Só ouvimos quando isso é conveniente politicamente. É preciso colocar na agenda. Fazer isto às vezes é mais importante do que os estímulos, sejam eles financeiros ou de apoio à facilitação ao trabalho dos industriais e dos empresários que, no fundo, são quem cria valor e emprego. E depois, em conjunto, conseguir transformar o país. Eu penso que isto é que é capital.

Vamos agora à dimensão política. Neste contexto tão difícil para a indústria agroalimentar, as ajudas do Estado têm sido suficientes?

O que temos vindo a propor a este Governo desde o ano passado, face ao aumento exponencial das matérias-primas e dos custos energéticos, é uma linha de apoio à tesouraria das empresas.

A linha de crédito à produção que foi anunciada?

Exatamente. Foi a FIPA que a apresentou no ano passado antes das eleições para fazer face às circunstâncias que estávamos a viver e às enormes dificuldades que as empresas estavam a viver na fase de pandemia, com as suas tesourarias em baixo, dificuldade em fazer stock e a comprar naturalmente mais caro para assegurar a cadeia de abastecimento.

O Governo anunciou na semana passada [esta entrevista foi feita a 23 de março] uma linha de apoio que já tive oportunidade de dizer ao executivo é manifestamente insuficiente. Porque estamos a falar de 400 milhões de euros para toda a indústria transformadora, mais de 500 milhões necessitava o setor agroalimentar para fazer face às suas dificuldades de tesouraria. E estamos a falar de uma linha de financiamento, não de apoios a fundo perdido. Estamos a falar de apoio à tesouraria das empresas, nomeadamente num momento que sabemos que o sistema financeiro não tem funcionando e muitas empresas, face ao esforço que estão a fazer, vão enfrentar graves dificuldades nos momentos de campanha ou nos momentos de maior pico. Nesta matéria, não estamos satisfeitos e mal era se estivéssemos. E não estamos satisfeitos com um conjunto de outras medidas que foram tomadas.

Quais?

Nomeadamente com o PRR [Plano de Recuperação e Resiliência]. Sentimos que é um momento genericamente perdido para o crescimento das empresas e da economia em Portugal porque não é especialmente direcionado às empresas e sobretudo compromete de sobremaneira aquilo que era necessário para fazer crescer a economia. Estamos a falar de um PRR muito virado para o investimento público e em setores que consideramos que não seriam os prioritários.

O que espera do próximo Governo? Que pedidos gostava de fazer ao novo executivo?

Não fazemos pedidos hoje para que eles aconteçam amanhã. Temos vindo a dar indicações nos últimos contactos que tivemos com o Governo sobre o que sentimos ser necessário para Portugal.

O que é que esperamos? Em primeiro lugar, e vimo-lo a dizer há anos, Portugal necessita de um Ministério da Agricultura e da Alimentação [medida que se concretizou]. Tivemos uma experiência positiva de uma secretaria de Estado da Alimentação que foi realmente um primeiro passo e, depois, tivemos uma secretaria de Estado da Agricultura e Alimentação, uma coisa híbrida. E depois não tivemos coisíssima nenhuma. Sendo que este ministério forte deve estar articulado com os produtores a nível nacional.

Depois, é preciso ter um Ministério da Economia com capacidade política e capacidade efetiva de apoiar as empresas e a economia. Fizemos um trabalho muito aprofundado com o governo e, tenho de dizer, sobretudo com a secretaria de Estado do Comércio e Consumidores, nomeadamente com o engenheiro João Torres. E refiro isto não apenas pelos resultados alcançados mas, sobretudo, pelo diálogo e pelas interações que fomos tendo. É para isto que serve um Governo. Depois é preciso dar margem para que as empresas trabalhem, mas esta partilha e compreensão sobre aquilo que é a indústria e as suas necessidades, foi inédita. Não atingimos tudo aquilo que pretendíamos e que achamos que é necessário para o país, mas tivemos um bom exemplo de como se pode ser simultaneamente político e um instrumento de apoio àquilo que é a economia nacional e, sobretudo, à vida das empresas.

O que desejamos é que as políticas, mais do que as pessoas, sejam aquelas que Portugal necessita e estamos numa situação extraordinária que não pode permitir outra coisa se não avanços positivos.

Um Governo de maioria de absoluta, que não está amarrado a jogos de poder e partidários, que não são aquilo que os países necessitam e muito menos o que as empresas necessitam, tem um espaço de manobra enorme, mas é preciso que saiba interpretar as necessidades do país e das empresas.

Como é que gostava de ver a indústria alimentar daqui a quatro anos, no final da legislatura?

Temos uma ambição. Temos consciência de que este é um dos setores que mais tem evoluído tem nos últimos anos. E quando digo evoluído, digo em todos os parâmetros, quer a nível do tecido produtivo, da gestão, da qualidade e da sua interação com os consumidores. Somos um setor que assume hoje reforçadamente uma responsabilidade relativamente àquilo que são as necessidades dos consumidores, e daí que todos os processos onde temos estado envolvidos, desde as questões da autorregulação em matéria de informação ao consumidor, seja em matéria de reformulação, exigiu em pela pandemia um sacrifício enorme de alguns setores que demostraram que em autorregulação, sem impostos especiais ao consumo que sabemos que tem apenas um fundamento que é gerar mais dinheiro para os cofres do estado, geraram resultados positivos.

O acordo entre a FIPA, a indústria, o Ministério da Saúde e a Direção Geral de Saúde [o processo de reformulação de alguns produtos alimentares levado e cabo entre 2018 e 2021 conduziu a uma redução global de 11,5% no teor médio de sal e de 11,1% no caso do açúcar] são um exemplo do que somos capazes de fazer num processo, é importante dizer, inédito na Europa, se não mesmo no mundo.

Pelos resultados alcançados?

Não só pelos resultados, mas pelo processo em si mesmo de autorregulação, a parceria entre o Governo, as autoridades de saúde e a indústria.

Empenhados agora empenhados numa agenda estratégica para a década, que estamos à beira de apresentar ao país no Congresso da Indústria Alimentar que vai acontecer em junho, em Lisboa, no dia 7, exatamente no ano em que a FIPA comemora 35 anos da sua fundação.

Pode levantar um pouco o véu da agenda estratégica?

Na nossa agenda estratégica iremos trabalhar com enormes parcerias, entidades e setores extremamente importantes para o crescimento da economia portuguesa, e sobretudo da indústria agroalimentar, a par naturalmente do Congresso em si, são marcos que esperamos definam um novo caminho para o país, para o mundo e para a Europa em particular.

Acreditamos que temos capacidade para continuar a crescer em vários setores da economia agroalimentar e esse caminho depende de nós, é preciso é que não nos coloquem obstáculos, e esses são naturalmente os custos internos, as burocracias e tudo aquilo que elimina a livre concorrência e dificulta o trabalho neste setor.

*Entrevista originalmente publicada na edição de abril do Hipersuper

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