Destaque Distribuição

“É indiscutível o valor que a Função Compras possui”

Por a 7 de Setembro de 2010 as 15:43

Qual o papel da Função Compras? Espremer preço? É uma função táctica ou estratégica? Como é vista pelas administrações? Segundo os dois especialistas ouvidos pelo Hipersuper, Diogo Nuno Santos, Partner da Deloitte, e João Casimiro, Membro dos Órgãos Sociais da APCADEC, trata-se de uma função que passou de “nice to have” a “must have” numa empresa.

Hipersuper (H): Num relatório apresentado no início do ano a Deloitte, em conjunto com a APCADEC, refere os mitos da “Função Compras”. Que mitos são esses?
Diogo Nuno Santos (D.N.S.):
O conteúdo era mais ou menos provocatório, no sentido de trazer um pouco para cima da mesa um conjunto de afirmações que são tidas como verdades absolutas e são quase de carácter publicitário, o que não corresponde à verdade. Dizer-se que a Função Compras corresponde a uma função estratégica dentro das organizações ou que é a principal alavanca de redução de custos dentro das organizações, são chavões a que nos vamos habituando, mas depois quando as analisamos em profundidade, e se as práticas que estão implementadas nas compras estão ou não alinhadas com essas frases, chegamos à conclusão que não é assim.
Quando vamos ver se a Função Compras é ou não estratégica, não reportando à administração, ou se é uma área de natureza eminentemente operacional e transaccional, então na prática não é estratégica. Se a Função Compras a única coisa que tem de fazer é processar encomendas e espremer preço, então não está a cobrir todas as possibilidades que tem na redução de custos e tem um foco muito restrito.
Por isso, os mitos que colocamos em cima da mesa eram exactamente para perceber que aquilo que se diz e que se toma como verdade absoluta, na verdade e na prática, o que está implementado nas organizações, não está tão alinhado.

H: Quer isto dizer que a Função Compras não é tão essencial numa organização?
D.N.S.:
É indiscutível o valor que a Função Compras possui. A forma como está implementada ou é operacionalizada nas organizações é que não capitaliza todo o potencial da sua criação de valor.
Quando chegamos à conclusão que a Função Compras pode actuar na optimização da cadeia de logística, não só numa perspectiva de preço, mas também de serviço, quando concluímos que, numa altura de crise como esta, a Função Compras pode impactar o que é o New Working Capital, começamos a ver que, efectivamente, as áreas de criação de valor são muito extensas.
João Casimiro (J.C.):
Geralmente nota-se, em altura de crise, como a actual, que a Função Compras já começa a ser estratégica. As compras das empresas já se focam mais nos custos e, portanto, a Função Compras já começa a aparecer mais. Muitas vezes a primeira abordagem à Função Compras é de poupanças e redução de custos. Cada vez mais temos de ser mais estratégicos e perceber que, mais do que estar a espremer preço, é perceber onde vamos conseguir baixar os preços e obter margem para negociar, mesmo nos processos internos.
Isso já deveria ser definido, à partida, pela administração de uma empresa como estratégico. Muitas vezes, a primeira abordagem são as poupanças e não tanto na cadeia de valor ou processo para atingir essa poupança.

H: Esta altura de crise, fez as organizações olharem de uma forma diferente para a Função Compras?
J.S.:
Sim. À medida que as coisas vão crescendo, a Função de Compras é um “ad-on”. Está lá, tem de ser feito e é bom ter a redução de custos.
Quando existe um estancar do crescimento e as receitas não são as mesmas, a forma mais rápida e eficaz é, de facto, a contenção de custos e pensar reduzi-los. Assim, a Função Compras, que era uma coisa “nice to have”, passa a ser essencial para a empresa, porque tem de se conter os custos para atingir os resultados. Em tempo de crise, é claramente o foco.
D.N.S.: A questão depois, é saber se o foco é o mais correcto. Ou seja, em alturas de crise as compras passam para o spotlight. A Função Compras passa a ser objecto de uma actuação eminentemente táctica, de curto prazo. Não é pelo facto de surgir agora em cima da mesa que passa a ser estratégica.

H: Em relação a esta questão da táctica e da estratégia, o que quer dizer isto realmente? Uma táctica não tem sempre algo de estratégico por trás?
D.N.S.:
Em tese, sim. Na prática, não acontece bem assim. Quando falamos em táctica, em alturas de crise, o foco na redução de custos, teoricamente, o mais imediato para capitalizar essa redução de custos, é a actuação na dimensão preço. As orientações que seguem de uma administração para uma direcção de compras são cada vez de maior pressão do factor preço.
O pensar estrategicamente a Função Compras é ir muito mais além e pensar no benefício que poderei ter ao nível da cadeia de valor, níveis de serviço, desenvolvimento de novos produtos, capitalizar nas experiências de fornecedores, são acções de natureza estratégica cujo impacto e benefício não vou sentir a seis meses, num ano ou dois, mais a mais longo prazo. O que é certo é que, em alturas de crise, a Função Compras vem para cima da mesa, mas apenas no pacote que envolve a redução de preços.
J.S.: Basicamente, trata-se de olhar para uma estratégica de curto ou longo prazo. Por exemplo, se uma organização tentar conter o aumento de preço, isso é puramente táctico. A estratégia para os próximos anos, e existindo, por exemplo, dois grandes fornecedores e havendo um terceiro, é pegar nesse novo player e tentar potenciar e desenvolver esse fornecedor para, mais tarde, quando se proceder a nova consulta do mercado, ter três fornecedores em vez de dois. Isso é estratégico.

H: Mas onde é que se pode rentabilizar a compra?
D.N.S.:
Em toda a cadeia de valor. Se pensarmos no final da linha de negócios, ou seja, o que faço é pegar em algo que já foi produzido por um terceiro e funciono como distribuidor, como intermediário. A minha grande função na perspectiva de Compras prende-se com a agregação, ganho de escala, capitalizar a rede de distribuição. Objectivamente, naquilo que são as alavancas da criação de valor da Função Compras podemos dizer que estão um pouco reduzidas face àquilo que uma entidade produtora tem.
Uma entidade produtora como tem vários serviços associados à produção de determinado produto, desde do marketing, desenvolvimento, investigação, produção, distribuição, tem um leque de funções mais abrangentes e com maior dependência e interacção com fornecedores. O meu desenvolvimento de novos produtos pode ser feito com fornecedores, a minha estratégia de marketing podem ser feitas em conjunto com os fornecedores, como a produção e distribuição.
São actividades onde minha articulação e própria dependência de fornecedores são maiores. Portanto, na tal perspectiva estratégica e de actuação, a montante da minha cadeia, a Função Compras pode ter um impacto maior.

H: Mas essa Função Compras terá sempre dependente do fornecedor. Terá de haver sempre uma negociação. Para haver comprador tem de haver vendedor. Esse equilíbrio está a favor de quem vende ou quem compra?
J.S.:
Depende do mercado. Se tivermos a falar de grande distribuição, poderá estar do lado do retalhista que é muito maior que o produtor, mas há mercados onde claramente não há grande margem de manobra, refiro-me aos casos de monopólio como, por exemplo, da PT ou EDP.

H: Na distribuição, embora já exista alguma concentração, ainda existem vários players no mercado que permitem ao fornecedor ter opções?
D.N.S.:
Correcto. Mas teoricamente, embora sejam poucos retalhistas, o peso individual de cada um é bastante significativo e eu, enquanto produtor, não consigo ser competitivo num mercado onde abdico de servir determinado cliente.

H: Mas se não abdica, muitas vezes pode acontecer que terá de baixar demasiadamente a minha margem?
D.N.S.:
Exactamente.
J.S.: Depois, também, entra a parte da questão ética. Chega a um ponto em que, eticamente, não se pode puxar mais pelo fornecedor. Até porque o interesse é manter uma base de fornecedores sólida e sustentável ao longo do tempo. Não é rentável andar sempre a trocar de fornecedor e verificar a qualidade dos produtos.

H: Porque isso também são custos?
J.S.:
Pois são e muitas vezes altos. Se uma organização, por estar sempre a trocar de fornecedor, tiver de estar sempre a controlar qualidade de produtos com testes, todo esse processo demora tempo e tem custos inerentes. Por isso, não interessa ao comprador não ter uma base de fornecedores sólida.

H: Mas voltando ao ponto de equilíbrio, existe algum ponto em que se possa dizer que não se pode esticar mais a corda?
D.N.S.:
Teoricamente esse ponto de equilíbrio existe, mas é difícil de defini-lo de forma precisa.
Quando estamos nos grandes colossos, é óbvio que o poder negocial junto de qualquer fornecedor é gigantesco. Mas também assumem que a sustentabilidade da sua base de fornecedores é também um aspecto crítico.

H: Mas a perspectiva de quem está de fora é que o comprador tenta sempre esmagar ao máximo o fornecedor?
D.N.S.:
Depende do que pode perder. Há várias empresas cuja competitividade ficou posta em causa por falhas no serviço do fornecedor.
Vamos partir do pressuposto de que tem o preço mais competitivo do mercado, que o processo negocial foi o mais eficaz, mas depois o que perde quando há uma falha no serviço do fornecedor, deita tudo abaixo. É esse equilíbrio que tem de ser analisado.
No sector da distribuição o que se faz, normalmente, é redistribuir algo. Ou seja, fazer com que uma falha de um fornecedor, sendo sempre algo penalizador, não seja desruptiva.

H: Na distribuição, no entanto, há determinadas cadeias – tipo Wal-Mart ou Carrefour – que estão a pressionar os seus fornecedores para terem o mínimo possível de stock e a negociar prazos de entrega para os produtos, limitando o timing de entrega, de forma a ter o menos produto possível. Que papel tem aqui a Função Compras?
D.N.S.:
Tem de imediato um papel muito simples: o dia em que a grande distribuição tomou consciência do custo da logística, passou para o âmbito das Compras não só a negociação do preço como, também, das condições logísticas.
Chegou-se à conclusão de que não ter produto na prateleira às vezes pode custar mais do que aquilo que estou a poupar por via do preço.

H: Depois do preço, qual a variável com mais peso?
D.N.S.:
Qualidade e nível de serviço.
J.S.: Não há uma resposta única, porque depende do negócio. Se tivermos a falar de produtos informáticos, talvez seja mais a especificação técnica.

H: Em produtos alimentares …?
D.N.S.:
É a qualidade.

H: Um conceito que me despertou a atenção foi o seguinte: “Companies do not compete, supply chains compete”. A criação de valor está sempre na dependência da boa execução da cadeia de valor?
D.N.S.:
Um exemplo é o da Zara. É uma organização cuja cadeia logística é toda ela desenhada de forma bastante integrada e articulada, tendo como objectivo último a garantia de ter um produto em condições competitivas, como também, de serviço distintivo. Quando analisamos os rácios de rentabilidade, rotação e stock de uma Zara são, de facto, indicadores que a distanciam da concorrência e que não têm como razão principal o facto de comprarem mais barato.

H: Esta necessidade de rotação foi criada pelo consumidor ou organizações?
D.N.S.:
Objectivamente pelos dois. Por um lado, o cliente tem essa exigência, por outro, as organizações percebem que um factor de diferenciação da sua concorrência é, de facto, serem inovadores, anteciparem-se e ter o produto mais cedo que a concorrência.
Ao ritmo que surgem coisas novas, o factor “first mover” é muito importante, já que é possível montar toda a cadeia de abastecimento, desde o desenvolvimento, à produção, à logística, de modo a ter o produto mais rápido e primeiro que a concorrência.
O que se conclui é que essa vantagem de ser o first mover é a grande diferenciação e que atrai o consumidor. Por outro lado, sendo o first mover, por vezes, essa organização pode dar-se ao luxo de ter um preço mais alto e aqui o foco da Função Compras não é o preço a montante, mas garantir que todos os elementos da cadeia me suportam nesta estratégia.

H: Conseguem definir o processo de compra ideal?
D.N.S.:
Diria que o primeiro aspecto crítico é, de facto, perceber-se quais as áreas de criação de valor potencial da Função Compras, ou seja, em função do que é a estratégia da minha organização tenho de perceber em que medida é que a minha base de fornecedores pode contribuir para a produção dessa estratégia. Isto é, se essa base de fornecedores contribui com melhor produto, melhor serviço, com tempo de entrega mais rápido, com colaboração nos processos de desenvolvimento, condições de pagamento mais favoráveis. Há que perceber, de facto, o que é que se pode capitalizar da minha relação com os fornecedores.
A seguir aparecem factores como ajustamentos em função da categoria de compra, do mercado de fornecedores, da própria empresa, perceber como é que os processos, que são sempre os mesmos, devem ser adequados para que, de facto, criem valor.
J.S.: Não há, de facto, uma resposta única. Se tivermos a falar de um produto banal, pode ser-se um pouco mais rígido na negociação. Se quisermos ter um produto inovador, é necessário a organização sentar-se com o fornecedor e haver uma interligação e interacção. Aí já não é uma negociação, mas mais uma parceria.
Não há um processo ideal, depende sempre do que se quer comprar, como se quer comprar e onde se quer comprar.

H: Mas a actual crise veio acelerar esses processos.
D.N.S.:
Acho que não.
J.S.: O que a crise veio trazer foi visibilidade.
DNS: Veio acentuar o foco na tal actuação táctica. Ou seja, vamos lá chamar as Compras para espremer o preço. Esta crise não potencia melhores comportamentos ou uma reflexão mais estratégica. Esta crise potencia comportamentos diferentes, ou seja, tentar arranjar maneiras de compensar as perdas.

Deixe aqui o seu comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *