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ADN DA DISTRIBUIÇÃO: O crédito, por José António Rousseau

Por a 27 de Maio de 2013 as 15:19

14º Gene da série O ADN DA DISTRIBUIÇÃO

O CRÉDITO

Por José António Rousseau

Na Antiguidade clássica, o Deus dos mercadores era, simultaneamente, o Deus dos ladrões. Desde então e ao longo dos tempos persistiu esta associação negativa que hoje está ultrapassada. Contudo, um facto incontornável e aparentemente contraditório, é que desde sempre, a classe dos comerciantes tem sido um instrumento, quase insubstituível, de crédito ao consumo e aos seus clientes.

Na pequena mercearia de 40 m2 do meu avô Pereira, em Beja, recordo-me perfeitamente de ver em criança, numa das pontas do enorme balcão de madeira pintado de azul, ao lado da balança, um livro de folhas, muito amarrotadas por um desfolhar nervoso e frequente, onde se viam listas de nomes e de respectivas quantias em dívida. Era, vim a perceber muito mais tarde, o famoso livro de fiados.

Longe de constituir uma atitude de excepção, pedir emprestado e emprestar no comércio, nomeadamente, o crédito ao consumo concedido pelos comerciantes, sempre se constituiu como um elemento essencial da actividade económica e uma pratica usual e difundida na vida quotidiana das populações de qualquer país.

Encontram-se, ao longo da história, inúmeras referencias a dívidas dos consumidores a comerciantes (pequenas dívidas a padeiros ou merceeiros faziam parte frequentemente das listas de débitos dos inventários feitos post-mortem) considerando-se estes actos como de crédito, não só quando existe empréstimo de dinheiro, mas também, no caso de pagamentos adiados de serviços prestados ou de dívidas resultantes de compras de produtos não pagas.

Neste último caso, o recurso ao fiado surgia associado, com maior frequência, à compra de produtos comestíveis que se faziam nas lojas alimentares, encontrando-se logo a seguir, as compras de fazendas e vestuário e os medicamentos adquiridos no boticário.

Regra geral, as quantias em dívida não atingiam montantes elevados, sendo os devedores identificados pelo nome, morada ou profissão ou por uma combinação destes elementos enquanto os produtos que geravam a contracção da dívida raramente mereciam referência.

Esta clientela, de forma normal e regular, ia solvendo as suas dívidas à medida que contraía outras, porém, como as quantias em dívida não chegavam a ser totalmente pagas, dado que as entregas periódicas não atingiam a totalidade dos montantes em dívida, iam-se acumulando com as mais recentes parcelas referentes a novos produtos comprados, também a fiado, numa longa e interminável corrente.

O facto de, nos séculos XVIII, XIX e primeira metade do século XX, os rendimentos em dinheiro entrarem de forma descontínua nos orçamentos familiares seria, porventura, o facto explicativo mais significativo para a elevada taxa de penetração do crédito no quotidiano das populações, uma vez que, a irregularidade nos fluxos de rendimento é, sem dúvida, uma razão geradora de actos de crédito.

Do ponto de vista do processo de comercialização, a difusão do sistema de vendas a crédito assentava, inegavelmente, em vantagens recíprocas, na medida em que para o comprador facilitava a obtenção dos bens necessários à manutenção dos seus consumos diários e para o vendedor era um meio de assegurar vendas e fidelizar clientes. O crédito foi assim, na sua génese, uma efectiva coincidência de interesses.

A partir da segunda metade do século XX, com a introdução do sistema de livre serviço e a modernização dos formatos comerciais através dos supermercados, hipermercados e outras grandes superfícies comerciais em que se exige o pagamento imediato, a prática do fiado quase desapareceu nos meios urbanos mas manteve-se sempre, com maior ou menor visibilidade, nas regiões de província.

Hoje, a informalidade do livro de fiado vai a par de outros processos mais formais e exigentes de crédito ao consumo, tais como, a venda a prestações e a utilização de cartões de crédito.

No entanto, a importância dos mecanismos de crédito nos processos de comercialização não se limita à fase terminal de retalho junto do consumidor mas existe também em fases anteriores do processo, nomeadamente, ao nível do abastecimento do mercado, entre os comerciantes e os seus fornecedores.

De facto, no negócio da distribuição, os fornecedores são uma fonte importante de potencial financiamento através do crédito que concedem aos seus clientes.

Este crédito existe por força da discrepância entre o momento da venda das mercadorias aos consumidores e o momento em que estas são efectivamente pagas aos fornecedores. Quanto maior for este lapso de tempo e o número de rotações do stock verificado ao longo do ano, tanto maior será o potencial de financiamento gerado pelo crédito dos fornecedores.

Ou, por outras palavras, a diferença entre a velocidade de rotação dos stocks e o crédito dos fornecedores gera um fundo de tesouraria que é frequentemente utilizado como fonte não só de rentabilidade mas também de financiamento dos investimentos no sector, nomeadamente, na expansão das suas redes de lojas.

Assim, quer a montante com os fornecedores quer a jusante com os consumidores, a actividade da Distribuição está marcada, desde os seus primórdios, por diferentes operações de natureza creditícia que se constituem porventura, como a sua marca genética mais ímpar e relevante.

José António Rousseau

Consultor e docente universitário

www.rousseau.com.pt

 

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