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Mau Tempo no Canal, por Carlos Liz (Ipsos Apeme)

Por a 16 de Outubro de 2012 as 13:35

FORA DA CAIXA: Por Carlos Liz, Partner da Ipsos Apeme

À medida que se aproxima da loja, o consumidor vai interiorizando o boletim meteorológico, que constantemente é emitido pelo sistema mediático. As previsões repetem-se e os mapas de anti-ciclones sobrepõem-se na sua consciência de cidadão informado. Pelo caminho vai procurando sinais que provam as previsões para hoje, amanhã e depois e não é difícil encontrar aspectos da cidade em crise. Instalado no seu novo estatuto de infelicidade macro-económica, o consumidor tem uma tarefa pela frente – até há pouco tempo relativamente fácil de executar: gastar dinheiro para fazer compras essenciais ao funcionamento pessoal e da família. E o consumidor, que mantém a sua natureza humana total, ou seja, que não se esgota na dimensão económica, sabe que no funcionamento da família entram muitas coisas: sentimentos, sonhos, memórias, pequenos gestos, lembranças inesperadas. Tudo individualizado, porque 3 ou 4 são entidades quantitativas, somáveis, mas ao mesmo tempo “in-somáveis”, por serem pessoas únicas.

O consumidor transporta a tensão a que tem direito para dentro da loja: parte obrigatória de uma crise enorme que o reduz a um ser sem esperança e revoltado em colectivo e, ao mesmo tempo, ele é um humano comprometido com os seus humanos mais próximos, que ele escolheu ou, mesmo, criou e que precisam de espaço para respirar, de elementos que os façam viver com vontade, de ter projectos. O consumidor tem dificuldade em escolher o modo de expressão quando começa o percurso na loja: carregado por causa da crise ou enternecido por causa dos filhos ou netos. Se aparecesse a jornalista do telejornal entrava em modo crise isto-está-cada-vez-pior-não-sei-onde-vai-parar mas se aparecesse a vizinha ou alguém mais amigo optava pelo modo intimista de falar, relatando os progressos das crianças na escola. O mais natural é que o consumidor vá vivendo esta dualidade de estados de espírito e de papéis, tomando as suas decisões com base numa grelha que lhe parece a melhor.

Uma grelha de avaliação da oferta disponível baseada na mais antiga de todas as funções fundamentais: a Utilidade. Quer dizer, a possibilidade de integrar as aquisições num processo de construção, de afirmação da vida de todos os dias. É útil o que me faz andar para a frente, sentir-me bem comigo próprio, ter capacidade de apoiar os outros com quem me relaciono, trazer-me ideias para eu criar coisas novas que respondam a novos desafios. Compra-se o que é mais visível e proximamente útil, o que mais impacto tem na vida, o que se percebe a vantagem. E, claro, a Utilidade também passa pela possibilidade, pela escolha, pela decisão entre o que é acessível e não inviabiliza outras Utilidades. Com os boletins meteorológicos interior e exterior bem presentes na cabeça e no coração, o consumidor compra na loja o que lhe vai ser importante para manter o seu estatuto de pessoa equilibrada, de alguém responsável perante si e os outros que há muito tempo entendeu ser a vida uma corrida de fundo, um percurso de meta tão longínqua quanto possível.

Mau tempo no canal, mas um canal é um canal. Serve para passarem por lá os navios, que levam pessoas, mercadorias, histórias que não ficam presas em nenhum canal. Mau tempo no canal? Pois, então, que haja bom tempo na loja. Que a loja se desdobre nas duas dimensões estruturantes de quem lá vai: a dimensão macro e do rendimento disponível para gastar, a dimensão micro e da vida disponível para viver. Que a loja seja explícita e dura nos descontos e seja implícita e suave na relação. Que a loja demonstre que é como as pessoas a quem serve: um ser complexo que vive em tensão mas que a sabe dominar e que, sobretudo, não se deixa impressionar pelo boletim meteorológico do dia, ou sequer da semana.

 

 

 

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