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“Queremos ser Harvard da área da restauração para pessoas com dificuldade intelectual”

Por a 27 de Março de 2024 as 10:01
Filipa Pinto Coelho, presidente da VilacomVida

A VilacomVida contrata pessoas com incapacidade, sobretudo intelectual, para formar, mas a sua missão vai além da empregabilidade. A presidente da associação acredita que é preciso consciencializar a sociedade para normalizar a diferença através da mudança de mentalidades. Filipa Pinto Coelho está convicta que setor do retalho pode ter um papel preponderante nesta alteração de paradigma, para que um dia possamos falar de “não exclusão em vez de inclusão”

A associação VilacomVida nasce em Portugal com o projeto dos cafés Joyeux?
A associação nasce através da iniciativa de um grupo de pais de crianças e jovens com dificuldade intelectual e de desenvolvimento, como a trissomia 21 ou o autismo, em dezembro de 2016, com o objetivo de criar um projeto de vida autónoma para estas pessoas na transição da escola para a vida ativa.
É aqui que se concentra muito a angústia das famílias, porque não existem respostas na comunidade compatíveis com o desenvolvimento do potencial dos seus filhos, acabando por ser realocados em contextos ocupacionais ou ficando em casa dos pais. Este é o problema social que nos fez juntar como famílias.
Tenho um filho com trissomia 21, o Manel, e, quando fui confrontada com o diagnóstico, tive medo, muito pelo desconhecimento desta realidade e, nesse sentido, propus à direção a criação de um projeto de comunicação, de marketing de proximidade, capaz de mostrar as capacidades e os talentos que estas pessoas têm e convidando a sociedade a fazer parte. A ideia era não criar mais um projeto dependente da assistência da segurança social ou da angariação de fundos.

Um projeto empresarial?
Exatamente. Um projeto que criasse uma necessidade. No caso das empresas, perceberem que existem pessoas que podem ajudar a resolver problemas nas suas empresas sem ser numa perspetiva de solidariedade. E, ao mesmo tempo, que nos permitisse cumprir esta missão: fazer com que um dia a diferença já não se veja. Esta é a nossa visão: um dia a diferença vai fazer parte de nós.
Quando a associação nasce, já aposta neste tom de comunicação positiva sobre os talentos e as capacidades destas pessoas, partilhando histórias de sucesso e fazendo disto uma realidade desmistificada para todos os pais que enfrentam esta realidade e para todos nós, enquanto cidadãos.
É, neste contexto, que entretanto nos cruzamos com o projeto do café Joyeux que tinha aberto o primeiro café em França, em dezembro de 2018.

Como aconteceu?
Entrámos em contacto com o projeto porque corporizava o que estávamos em vias de fazer: íamos lançar em Portugal os Cafés Convida, um conceito de café-restaurante inclusivo e solidário que permitisse integrar estas pessoas, sendo a associação o seu empregador.
Fomos ao encontro do fundador do projeto, Yann Bucaille, a Paris, e juntou-se aqui uma dupla perspectiva. Do nosso lado, eu representar as famílias e uma associação que queria fazer mais pela vida autónoma, com um projeto complementar, ajudando também outras associações, através da proximidade e da comunicação positiva, que queiram integrar no mercado de trabalho pessoas que estão ao seu cuidado. Trabalhar em rede é muito a postura deste projeto. Juntos somos mais fortes. Ajudando também estas entidades que fazem um trabalho incrível há muitos e anos e não beneficiaram como nós de uma mentalidade que se está a abrir para esta realidade, com a lei das quotas, por exemplo.

Quando é que sente que as mentalidades se começam a abrir?
A lei das quotas abriu os olhos das empresas para esta realidade. Por outro lado, as empresas que têm muito o foco da sustentabilidade e que já têm estratégias de responsabilidade social, acabaram por ver também, nesta comunicação e nesta visibilidade da diferença, uma forma de comprovarem que, de facto, estas pessoas podem ter a sua profissão e serem úteis nas empresas. Terem o seu lugar, um salário, não estarem ali por favor, sendo produtivas dentro das tarefas que desempenham que, também, podem ser simples, repetitivas e rotineiras, como estas pessoas o pedem.
As redes sociais ajudaram a ganhar visibilidade, percebemos que havia feedback muito positivo das pessoas em relação ao nosso projeto e, daí, seguimos para o piloto “Café com Vida”, que durou 18 meses e fechou com a pandemia. Este piloto abriu caminho para passarmos a representar a marca Joyeux em Portugal e para ganhar o apoio do programa das parcerias para o impacto, do Portugal Inovação Social, integrado no pacote Portugal 2020.

Para que projeto?
Com o projeto piloto do Café com Vida conseguimos provar impacto e ganhámos o projeto de gerações autónomas, que era um projeto de formação em contexto de trabalho, para potenciar empregabilidade e a proximidade à comunidade.

Onde abriu o café piloto?
Em Santos, na Fundação Portuguesa das Comunicações. Naquele café, que apoia uma causa, as pessoas puderam contactar com a diferença, perceberam a funcionalidade, foram bem servidas, voltaram e passaram a palavra de um projeto de qualidade. Com este projeto, comprovamos este conceito. Eu era a gerente, tinha uma pessoa a trabalhar comigo e contratámos a nossa primeira técnica, para medir o seu impacto, com especialização em integração de pessoas com dificuldade intelectual no mercado de trabalho. Quando este projeto piloto fecha, na pandemia, percebemos que o modelo funciona, é atrativo e tem qualidade.

Quantas pessoas constituíam a equipa?
Entre a cozinha e copa, era uma equipa de seis, três dos quais jovens, que estavam com estágio profissional e já tinham planos de integração. O gerente e o supervisor, ou dois supervisores quando o negócio começou a crescer – hoje o modelo dos cafés Joyeux- foram recrutados por terem jeito e alma para a formação e terem experiência de restauração, tinham como função ensinar estes jovens a saber ser, a saber estar, as competências e as técnicas. A ideia passou por criar uma equipa totalmente inclusiva, que também se sentisse enriquecida por estar a ter um papel na vida destas pessoas. Então, começámos a perceber que o projeto estava a contribuir para algo que na restauração é muito complicado de gerir, a elevada rotação de pessoas e a taxa de absentismo.

Fidelizava?
Sim, a pessoa sente que faz pare do projeto e não vai mudar para o restaurante ao lado por uma questão financeira. O elemento emocional na gestão daquela equipa começou também a contribuir para a estabilidade e para o crescimento do projeto.
Entretanto, introduzimos caterings para empresas, por uma questão de sustentabilidade e também a pedido da própria fundação. A resposta a um serviço que se começa a profissionalizar, permitindo-nos empregar mais pessoas que estavam na comunidade, na escola ou em casa. Através do nosso trabalho, em rede com outras associações, conseguimos recrutar pessoas para fazerem parte dessas equipas contratadas temporariamente para servir os caterings.
Descobrimos que a área da restauração estava por desbravar, por ser a área ideal para pessoas com dificuldade intelectual. Porque a ficha técnica da receita é sempre igual, a salada tem que ser lavada todos os dias.

Tem rotina, é isso?
Sim, e a rotina dá muita confiança a estas pessoas, porque se tornam especialistas naquela mesma tarefa. Percebemos que podemos ter um papel ativo na indústria da hotelaria gerando empregabilidade e contribuindo para a mão de obra neste setor.

Como funciona a formação?
A formação é sempre feita em contexto de trabalho. Estou perfeitamente confiante que, hoje, com a escola de formação que temos no Joyeux, e com quatro cafés, que temos um projeto que está a formar colaboradores polivalentes no setor da restauração, que, ao fim de dois anos, podem continuar connosco, porque têm um contrato sem termo, mas que têm capacidade para suprir muitas necessidades de outros parceiros na área da hotelaria e restauração, não por uma componente de solidariedade, mas porque eles vão ser polivalentes, e na indústria da restauração falta um bocadinho esta perspectiva da polivalência. Formam para a cozinha, para o bar ou para empregado de mesa. Nos cafés Joyeux ensinamos a competência técnica para trabalhar na cozinha, na caixa, no serviço de mesa e na sala. Passam seis meses em cada uma destas áreas.
Atualmente, temos dois processos de empregabilidade em curso com a Associação de Hotéis de Portugal, com quem assinámos um protocolo dia 14 de fevereiro de 2023, que tem como objetivo fazer um caminho de inclusão com as equipas dos seus associados.

A formação é muito completa.
Com as escolas Joyeux, a qualidade formativa para pessoas com dificuldade intelectual, e hoje com a parceria da Zara Home, outro tipo de incapacidades também, sem querer parecer presunçosa, queremos ser a Harvard da área da restauração para pessoas com dificuldade intelectual, a quem os parceiros vêm buscar pessoas para integrar nas suas equipas. Porque o modelo de formação é transformador, muito completo, que permite o saber ser, o saber estar, a pontualidade, a imagem, o cuidado, o trabalhar em equipa que depois desbloqueia aquilo que normalmente está na origem de casos de insucesso nessa tentativa de ir para o mercado de trabalho. Este modelo prepara-os para o mercado de trabalho, acima de tudo, porque lhes dá autoestima. Permite-lhes descobrir superpoderes, por isso é lhes chamamos de super-heróis, que eles nem sabiam que tinham. Esta autoestima está um bocadinho escondida, por força de um contexto de crescimento que não é fácil, a nível escolar, a nível social.

Qual é o principal ponto diferenciador deste projeto?
A grande transformação deste projeto não é tanto empregar pessoas com dificuldade intelectual, porque já existem muitas entidades que o fazem e projetos que deviam ter mais visibilidade, mas, acima de tudo, proporcionar a abertura de um novo mundo com um projeto diferenciador e uma equipa preparada para fazer as pessoas crescerem, dar essa autoestima e criar um equilíbrio ao nível social, competências de vivência em comunidade, necessárias em qualquer situação.

Quando abre, então, o primeiro café?
O contrato de franchising de representação desta marca foi assinado em abril de 2021. E, em novembro, abrimos o primeiro café em São Bento, em frente à Assembleia da República. Contratámos as primeiras nove pessoas e pusemos em prática o modelo de formação da escola Joyeux, que importámos, acompanhados por supervisores que têm a competência e orientação para a formação, que dão a técnica e a confiança que estes jovens precisam para brilhar. E é por isso que este projeto é diferenciador.

Na prática, empregam para formar?
Fazemos duas coisas diferentes do que já se faz. Sim, empregamos para formar. Assinamos contratos de trabalho sem termo com pessoas que em 99% dos casos não têm experiência profissional. Arriscamos contratá-las porque sabemos que esse formato de contrato lhes vai dar autoconfiança, que é oposta àquela que ele não deverão sentir quando passam a vida a correr os estágios de três ou seis meses.
O contrato de trabalho é um pilar desta estratégia que devia ser uma referência para todas as pessoas que empregam pessoas com vulnerabilidade. Porque o que acontece hoje é que a pessoa vai para uma empresa fazer um estágio, há um programa de formação [Emprego apoiado em mercado aberto] financiado, mas, depois, se a empresa decide recrutar essa pessoa, a medida leva uns meses a ser aprovada. As empresas querem contratar mas têm de esperar pela medida. Este jovem vai para casa, desaprende tudo o que aprendeu, porque há uma necessidade permanente de reforço, caso contrário na dificuldade intelectual há retrocesso quase em dobro, e quando vem a medida do emprego apoiado muito provavelmente já não é rebuscado porque seguiu outro caminho, se desinteressou, desaprendeu. E o dinheiro investido na formação perdeu-se.

Fazem ao contrário.
Sim, a pessoa é contratada, não perde direito à formação e a esse apoio tão importante para as empresas fazerem este caminho com produtividade durante dois anos. São apoiadas para empregar e para formar. É o contrato emprego – formação que existe no Café Joyeux, em Paris, e que infelizmente não temos em Portugal.

Qual é a segunda coisa que fazem diferente?
A segunda vem do contacto com a sociedade e da sua transformação. O professor que não sabe se aquele jovem terá capacidade para ter uma ocupação profissional. Se esse professor tiver contacto como cidadão na base social com esta realidade, vai saber que pode dar este passo sem medo.

E acreditar.
Sim. A mudança que queremos veicular, em conjunto com os nossos parceiros, é uma mudança de paradigma. Não podemos continuar a falar só sobre a perspetiva da empregabilidade, mas também pela perspectiva da transformação social. O que vai fazer com que um dia passemos a falar de não exclusão, em vez de falar de inclusão. A diferença virar paisagem. Normalizando a diferença, para que quando a empresa esteja a fazer um processo de recrutamento não faça diferença entre as pessoas nas entrevistas. Neste contexto, o setor do retalho pode ter um papel transformador da sociedade.
Estamos a desenvolver projetos com alguns parceiros, nomeadamente com a Casa do Impacto, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, projeto que vencemos no ano passado com o Café Escola Cascais. Uma das componentes do pagamento do prémio é o KPI (indicador-chave de desempenho) com base na transformação social dos clientes. Estamos a medir este impacto nos cafés. A perspetiva da pessoa que visitou o espaço mudou para a positiva, negativa ou ficou igual? Para medir o impacto na sociedade. Essa é a segunda grande inovação deste projeto. Passar a falar da transformação social e do papel da inclusão nessa transformação. E não só da empregabilidade porque estamos a dar emprego a pessoas que de outro modo não teriam essa oportunidade. Ainda não tenho números para partilhar.

Como é que funciona em termos de progressão na carreira?
Estamos a perceber junto dos primeiros jovens que vão agora terminar o curso de dois anos se podem dar o passo adicional em responsabilidade criando novas categorias em termos de perspetiva de carreira. Estamos na fase de perceber o que pode ser o próximo passo em termos de promoção que passará por exemplo pela criação da categoria intermédia, de assistente de supervisor. Amanhã, se calhar, de supervisor e, quem sabe, um dia gerente.

E de remuneração?
Recebem o salário mínimo nacional equivalente às horas de trabalho.

Hoje, têm quatro cafés?
Sim, o segundo abriu no edifício da Ageas Seguros no Parque das Nações. Servimos 1200 colaboradores diariamente. É um modelo insight (empresa), partilhamos o espaço com a associação Crescer, que gere o restaurante e nós gerimos um quiosque onde servimos também pratos quentes. O terceiro café abriu em Cascais e o quarto na Cofidis em Telheiras. Quando iniciámos, identificámos como projeto de crescimento abrir seis cafés até 2026 e em 2023 já tínhamos quatro. Este ano, vai ser de consolidação das equipas, da operação, da eficiência dos custos e da uniformização do processo de compras. Porque a rentabilidade que tivermos nessa gestão vai permitir criar mais postos de trabalho amanhã. Como contratamos sem termo, temos de abrir mais cafés para criar mais postos de trabalho.

Estima cumprir esse plano de crescimento até 2025?
Sim, vamos cumprir.

A quantas pessoas já deram oportunidade de trabalho e formação?
Penso que para cima de 40.

Os cafés são autossustentáveis?
Ainda não são porque há a componente da prestação interna dos serviços partilhados que ainda não conseguem remunerar. Pagam a operação, os salários, a renda, na componente operacional já são autossustentáveis, à exceção do de Cascais que acabou de abrir. Falta assegurar que faturem o suficiente para pagar os serviços centrais que alimentam esta rede.

Têm dois modelos de negócio?
A VilacomVida é uma IPSS com dois modelos de negócios sociais, embora com a mesma missão. Os cafés Joyeux, hoje quatro espaços, que prestam serviço de catering, vendem uma marca própria de café em grão e cápsulas, torrefaccionado localmente, para consumidor em casa e nas empresas, além de um blend da Nespresso, através de uma parceria de co-branding com esta marca. O modelo de negócio funciona de duas maneiras: angariamos fundos para abrir loja de rua ou as empresas que querem ter um café dentro das suas instalações avançam com o Capex para abrir o café, como acontece na Cofidis, por exemplo, e pagam a diferença do desconto que querem dar aos seus colaboradores num encontro de contas mensal e ainda garantem um resultado positivo que nos permita crescer. Se o EBITDA for superior ao estimado, dividimos a diferença com a empresa. No modelo de rua, angariamos fundos e desenvolvemos um plano de negócio. É um modelo mais difícil de se tornar sustentável porque pagamos rendas em linha com os valores de mercado.

O outro projeto é mais recente.
Sim, resulta de uma parceria com Zara Home. O grupo Inditex criou o conceito inclusivo For&From e queria expandir o conceito para Portugal. Chegaram até nós através dos cafés Joyeux porque procuram parceiros com visão empresarial, orientada para o resultado positivo, sem medo, porque o lucro numa instituição sem fins lucrativos faz crescer. Visitámos alguns espaços em Espanha, percebemos o modelo de formação, e ganhámos a gestão da primeira Zara Home For&From em Portugal. A Inditex encontrou o espaço e fez-nos um donativo para pagar os custos das obras. Funciona da seguinte forma: compramos o produto à casa mãe por um preço mais acessível porque é de uma coleção anterior.

*Entrevista publicada na edição 420

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