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Para além de ser um empresário de sucesso, António Silvestre Ferreira é um homem apaixonado por Ferreira do Alentejo. Quando regressou do Brasil, foi na sua terra que decidiu implantar o projeto de produção de uvas sem grainha que desenvolve há mais de 20 anos na Herdade Vale da Rosa. A marca é comercializada em todo o território nacional e internacionalizou-se já há vários anos. Mas é na sua Ferreira do Alentejo que António Silvestre Ferreira continua a investir. E onde criou recentemente uma fundação que está a ajudar a fixar no concelho, trabalhadores da empresa e suas famílias.
A Vale da Rosa introduziu a uva sem grainha no mercado português, há mais de 20 anos? Porque este produto? Pode dizer-se que a Vale da Rosa antecipou uma tendência futura?
Eu vivi no Brasil durante 22 anos e lá dei início à produção das uvas sem grainha. Fiquei muito motivado, quando um dia, nos primeiros anos da década de 80 li um artigo sobre a uva sem grainha, que referia que na Universidade de Davis, na Califórnia, estavam a desenvolver variedades desse tipo de uva. Eu tinha um colaborador – trabalhava numa cooperativa no norte do Paraná, na cidade de em Maringá, onde eu vivia, e dava-me assessoria – que me disse que ia em trabalho dessa cooperativa aos Estados Unidos e eu, que tinha lido esse artigo há relativamente pouco tempo, pedi-lhe para ir à Universidade de Davis e tentar trazer para o Brasil algumas dessas variedades dessas.
Ele trouxe-as para Maringá, fizemos uma produção experimental, e uma das variedades que ele trouxe, a Flame Seedless, deu-se muito bem em Maringá. Plantamos uma área com essa variedade e éramos, na altura, o único produtor brasileiro a vender uvas produzidas no Brasil, nos mercados brasileiros. Hoje o Brasil é um grande exportador de uva sem grainha, mas na altura não tinha.
Em 1999, o meu pai adoeceu e eu vim para Portugal. Ele faleceu em 2000 e eu recebi, de herança, terras e 100 hectares de uva com grainha. E quis muito também produzir aqui em Portugal as uvas sem grainha. Eu tive conhecimento que em Portugal já tinha havido duas experiências de produção de uva sem grainha, mas que não tinha dado certo. Quando começámos aqui em Portugal, o mercado português não tinha interesse nas uvas sem grainha. Então, exportávamos quase tudo para o Marks & Spencer, em Inglaterra. Para onde, aliás, o meu pai já havia exportado entre 1972 e 1976, ano em que parou porque fomos ocupados. Mas como eu já tinha esse conhecimento – naquela altura éramos eu e o meu irmão mais velho que trabalhávamos a exportação – quando regressei a Portugal, recomecei as exportações para o Marks & Spencer
A minha vida aqui em Portugal tem sido uma luta constante a desenvolver as uvas sem grainha. Entretanto, começou a haver mais interesse neste tipo de uva e nós trabalhamos no sentido de divulgar a nossa marca.
Quantos hectares tem de produção e quantas variedades são cultivadas?
Hoje, a nossa área de produção é de 270 hectares e produzimos mais de 20 variedades. Apenas 15% da produção é de uva com grainha. Entretanto, há uma dúzia de anos estamos a trabalhar particularmente com variedades protegidas, variedades pelas quais nós pagamos royalties pela produção. Apareceram organizações, particularmente na Califórnia, mas também de Israel, que se especializaram no melhoramento das uvas sem grainha, tanto no volume, como na cor e no sabor e têm feito um grande trabalho.
A Vale da Rosa tem então feito um investimento em investigação e desenvolvimento?
Muito. Porque cada variedade tem as suas particularidades e deve ser trabalhada de uma forma particular e diferente. E isso pressupõe um acompanhamento técnico muito intenso e pressupõe muita dedicação e muito investimento nessa área.
A empresa encerrou a campanha de 2023 com 4.500 toneladas de uvas comercializadas e uma faturação na ordem dos 19 milhões de euros. A fasquia para este ano está mais elevada? E qual é a previsão de produção em 2024?
Nós temos vindo a reconverter muitas das nossas vinhas. Tínhamos muitas variedades com grainha e tínhamos também muitas variedades sem grainha, daquelas que são livres, que não são protegidas. Então, temos vindo a reconverter muitas das vinhas em variedades destas, protegidas. É um grande investimento e, em virtude disso, este ano temos menos quantidade. Estas variedades protegidas tendem a ser melhores do que as outras e como nós temos vindo a diminuir a produção das outras que não são protegidas, vamos ter cada vez mais produção destas. Portanto, digamos que a evolução do Vale da Rosa vem nesse sentido, o de termos, dentro de poucos anos, somente variedades dessas que são efetivamente melhores do que as outras.
Que desafios à produção tem enfrentado? A água, o regadio, é o grande desafio?
O nosso grande desafio é a mão de obra. Na medida em que, como nós produzimos um produto gourmet, esse produto requer ainda mais mão de obra e mão de obra especializada. Nós especializamo-nos em produzir qualidade. Temos de produzir menos quantidade nas áreas em produção e temos de as trabalhar muito mais. Todos os cachos são manuseados várias vezes e é imprescindível que tenhamos mão de obra especializada. E aí temos tido um problema que temos vindo resolver já desde há muitos anos.
Começamos por ir à Ilha da Madeira, contratar venezuelanos e luso venezuelanos e conseguimos contratar umas 150 pessoas. Hoje estão cá 80 e dessas pessoas, cerca de 40% ocupam lugares de destaque na Vale da Rosa: são chefes, encarregados, técnicos. Mas precisamos de muito mais gente e esse projeto inicial animou-nos tanto que fomos contratar colaboradores à Colômbia e também ao Peru, particularmente, técnicos.
Hoje a empresa tem uma fundação, a Fundação Vale da Rosa, que tem como principal objetivo acarinhar estas pessoas que vêm para cá, convida-os a virem morar com as suas famílias para Ferreira do Alentejo e para as aldeias do nosso concelho. Portanto, fixando assim essas pessoas que efetivamente se destacam, e as famílias, na nossa comunidade.
A fundação ultrapassa, então, o âmbito da empresa, no sentido em que está a ajudar a fixar pessoas numa região, num concelho que precisa de gente jovem?
Sim, famílias jovens. Além disso, a fundação também tem como objetivo apoiar essas pessoas, particularmente no sentido da formação. Temos feito convênios com várias universidades. Particularmente com o Instituto Politécnico de Beja, que deu um curso de Tecnologia Alimentar a 15 colaboradores nossos que recebem essa formação, ministrada pelos professores do IPB, A formação já está no segundo ou terceiro semestre. É um curso de dois anos e algo que também traz muita alegria para nós, para a nossa Fundação.
A Fundação também tem um convênio com o IEFP que, neste momento, está a lecionar três turmas na Vale da Rosa. Uma do quarto ano, uma do sexto e uma do décimo segundo. A do quarto ano é particularmente importante porque há muitos imigrantes que chegam sem as habilitações literárias e para que eles possam progredir, enfim, nesses seus estudos, precisam de ter o quarto ano. Além disso, também temos aulas de português para os nossos trabalhadores imigrantes.
Tem trabalhadores de várias nacionalidades…
Sim. O ano passado eram 22 e este ano também. Estamos muito entusiasmados com este trabalho que a fundação está a desenvolver. Este ano também estamos muito felizes com a comunidade timorense, temos já aqui cerca de 150 jovens de Timor que estão a fazer um excelente trabalho. Recebemos acompanhamento de autoridades timorenses, particularmente da Embaixada, e também de outras pessoas ligadas à comunidade timorense, que têm feito um trabalho fantástico connosco, protegendo e acompanhando os jovens timorenses. Os luso venezuelanos e os timorenses têm, em comum, a ligação a Portugal, que achamos muito importante. Agora está programada a vinda de seis jovens de São Tomé e Príncipe para virem fazer um estágio na Vale da Rosa. Mas temos uma preocupação: o facto de não termos trabalho para todos no fim da campanha.
Como está a ser trabalhada essa questão?
Nós temos vindo a divulgar bastante este nosso trabalho com os trabalhadores imigrantes e várias empresas e câmaras têm-se interessado por este trabalho. A ideia principal é que as matas dessas regiões devem ser limpas no inverno, que é exatamente o período em que essas pessoas estão disponíveis, porque só vamos necessitar do seu trabalho seis meses depois.
Então, nós estamos a ‘cozinhar’ tudo isto. Já temos muita gente, mais gente virá, mas é muito importante que estas pessoas sejam tratadas com a dignidade que merecem, que sejam bem remuneradas, estejam bem instaladas.
E esse é o acompanhamento que a Fundação vai fazer?
Sim, exato. O pensamento é que através da Fundação nós desenvolvamos com intensidade esse trabalho. Fiquem aqui na nossa comunidade, que os filhos estejam nas nossas escolas. Isso está a acontecer, mas como precisamos de mais e mais gente, naturalmente a ideia é que isso seja aumentado significativamente.
Está a ajudar a mudar o panorama profissional da região?
Sim, sim. Das pessoas que temos trazido, algumas têm-se fixado na região, têm aberto comércio na sua especialidade, outros trabalham em eletricidade…. Enfim, queremos que isso vá contribuindo para o racional desenvolvimento da nossa comunidade. Naturalmente, esse tema dá-nos muita satisfação.
Para além da fundação, a empresa está a diversificar o seu negócio com investimentos em outros setores da agroindústria. Como a produção de passas, de vinagre balsâmico, de amêndoas. Sentiram a necessidade de levar algo mais aos mercados?
É lógico que procuremos industrializar também uvas, porque há as que não passam no controle de qualidade. É importante industrializarmos essas uvas e temos vindo a desenvolver a produção das passas de uva e também do vinagre feito à base das passas de uva, que é realmente um produto fabuloso. Também temos outros projetos em relação ao aproveitamento das uvas que não passam no controle de qualidade, como, por exemplo, o sumo de uva.
Porque a produção de amêndoas?
Eu tenho quatro filhos e os rapazes, que são ambos agrónomos, são produtores de amêndoas e achamos interessante fazer o casamento das passas de uva com as amêndoas.
Haverá mais alguma novidade ainda este ano da Vale da Rosa para o mercado?
Para o mercado nacional não, mas vamos iniciar a exportação para o mercado irlandês. E também estamos a dar continuidade à exportação via aérea para a Ásia.
A exportação ainda representa 30% do negócio no Vale da Rosa?
Este ano deve representar talvez 40%.
Que objetivos tem então para os mercados externos? É reforçar a presença onde estão ou irem à procura de novos mercados?
Nós estamos muito curiosos em relação à exportação para a Ásia por via aérea. Começamos no ano passado, exportamos para Hong Kong e Malásia.
Mas a exportação é um canal com muitas possibilidades para o produto como a uva sem grainha?
Sim, sim. Nós trabalhamos para fazer um produto gourmet, e os clientes mais exigentes e que podem pagar melhor, interessam-se pelo nosso produto. Exportamos para a Tesco, uma multinacional emblemática do retalho na Europa, que comercializa dois tipos de uva: a normal e a finest, que é vendida a cerca do dobro das outras. A Vale da Rosa é fornecedor da finest, o que é muito importante para nós, para o nosso nome, para a nossa dignidade.
A entrada na Irlanda foi importante…
Estamos a entrar agora, com um cliente muito importante, digamos com o mesmo nível de exigência.
A Vale da Rosa é fruto da sua paixão pela terra, que é longa. Mas qual será o caminho do futuro da empresa?
Bom, eu sou apaixonado pela minha Ferreira do Alentejo, esta é a grande paixão que eu tenho e sempre sonhei em poder contribuir para a minha terra. Pela experiência que fui adquirindo, não tenho dúvida nenhuma de que nós somos uma região produtora de sabor: o pão, o queijo, as azeitonas. Sempre achei que deveria ser um polo agroindustrial.
Porque se temos produtos tão bons e se temos possibilidade de produzir outros de igual qualidade, penso que a lógica seria nós industrializarmos aqui os nossos produtos, por forma a que as mais valias ficassem connosco. Hoje, basicamente através do Alqueva, tem-se vindo a produzir azeitonas e, ultimamente, amêndoas. E penso que, dado estas características da região, no que se refere ao sabor, naturalmente deveríamos produzir também frutas, produtos hortícolas, ter estufas, porque também acho que essas atividades trazem mão de obra.
E é com muita pena que eu vejo que 20 anos depois de termos o primeiro núcleo do Alqueva, exatamente em Ferreira do Alentejo, o concelho tem a metade dos habitantes que tinha quando eu era moço. Não bate uma coisa com a outra. Nós tínhamos de procurar, contribuir para que a nossa região se desenvolvesse. E para que ela se desenvolva, temos de criar empregos.
E também, mesmo no âmbito dos produtos que nós produzimos aqui, que são particularmente a amêndoa e a azeitona, eu também fico com pena de irem em natura para outros países para serem lá industrializados e muitas vezes reencaminhados parcialmente para Portugal. Portanto, as mais valias não ficam cá. E eu acho que isso é lamentável. É uma pena.
Nós temos a EDIA, que é empresa de desenvolvimento do Alentejo, e eu gostava de ver mais desenvolvimento. Devíamos fazer diferente do que estamos a fazer.
Mas a Vale da Rosa está a fazer a sua parte…
Sim, mas é pouco. Nós temos aqui 120 mil hectares de Alqueva ou mais, que estão a aumentar e eu fico triste por a minha terra não ser uma terra desenvolvida, e tinha tudo para ser. Eu tenho o meu exemplo no Brasil, nos meus 22 anos em Maringá que é no norte do estado do Paraná. Quando eu cheguei a Maringá, a cidade tinha 29 anos. Uma companhia inglesa foi contratada para fazer o loteamento da região e dividiram em pequenas áreas, cerca de 25 hectares, acho eu, pequenas parcelas. E vieram colonos, tomar conta dos seus lotes. Arrancavam a madeira, particularmente peroba, que é uma madeira rica, capitalizavam-se um pouco e plantavam café. E depois vinha muita gente, trabalhar nos cafezais.
Quando eu cheguei a Maringá, que tinha 29 anos, já havia 120 mil habitantes. Estes habitantes não tinham fábricas, não tinham nada, só tinham mata. Quando fui para lá, fui trabalhar na Universidade Estadual de Maringá, que já tinha 14 mil alunos. é um grande centro universitário. Maringá é um exemplo muito bonito porque cresceu muitíssimo depois nos serviços, no comércio, na parte industrial, particularmente a indústria agrícola, as cooperativas. Portanto, quando eu cheguei tinha 120 mil habitantes. Quando me vi embora. 22 anos depois, tinha 350 mil habitantes. E o ano passado esteve cá o prefeito de Maringá e disse-me que já tinha 460 mil habitantes.
Então, não há dúvida de que para que haja desenvolvimento tem que haver gente. Então a agricultura, a agricultura que precisa de gente é fantástica para o desenvolvimento. E esta agricultura das frutas, dos hortícolas, das estufas, precisa de muita gente. E eu gostaria que aqui a região estivesse mais desenvolvida nessa área.
Esta entrevista foi publicada na edição 427